Autor: Frederico
Eckschmidt
O complexo
do Si-mesmo ou Self (Selbst) corresponde à função
mais importante para a Psicologia Analítica. Ele pode ser compreendido
basicamente de duas maneiras: uma mitológica, quando assume a forma
de um Homem-Deus, e uma psicológica, quando representa a totalidade
de nossa personalidade ainda inconsciente.
Quando ocorre
ao indivíduo o aumento do conhecimento do 'eu', devido à
integração dos fatores de projeções (sombra,
animus e anima), inicia o processo de tomar consciência do Si-mesmo.
"Sua assimilação alarga não somente as fronteiras do campo da consciência, como também o significado do eu" (Jung).
Jung o definiu
como a totalidade da esfera psíquica que abrange todos os conteúdos
do consciente e o inconsciente, o ego e o não-ego, a psique e a
matéria. Sua manifestação na consciência é
sempre uma imago Dei (imagem de Deus).
Este arquétipo
se apresenta em três estruturas principais:
1. A da totalidade impessoal (a Verdade Absoluta, a eternidade, o Tao, o ponto e a circunferência, etc.);
2. A fonte da vida de todos os seres e do Universo (corresponde à libido de Jung e na Índia é conhecido como o Paramâtmâ (Vishnu) presente no coração de todos os seres); e
3. Uma personalidade suprapessoal (o Homem-Deus ou uma personalidade transcendente).
Quando é
incorporada ao sentido humano ela se manifesta como "uma imagem arquetípica
do potencial mais pleno do homem e a unidade da personalidade como um
todo".
É um
ideal mitológico que, para ser incorporado, é necessário
percorrer um caminho igualmente mitológico até chegar ao
símbolo unificador, geralmente na figura de um Salvador cósmico.
Um ser perfeito que faça a mediação entre Deus e
o homem. Essa representação é estruturada a partir
de arquétipos amplificados por emoções e projeções
devido à sua energia numinosa, assim transformam-se nas figuras
míticas de herói, do sábio, do Buddha (o Iluminado),
de Jesus (o Cristo), Caitanya (a manifestação do amor entre
Krishna e Râdhâ), Muhammad (Profeta), etc.

O mito formado em torno dessa imago é geralmente descrito na vida de um ser humano perfeito, que transpôs muitas dificuldades ou passou por provas, decidiu se isolar num lugar distante ou passou por um teste moral do encontro com a sombra (e não cedeu), assimilou a dualidade das sígizias (dos opostos complementares) e dessa forma conheceu o 'verdadeiro Deus' alcançando a 'transcendência'.
Por isso, quando
a pessoa adquiriu uma atitude simbólica em relação
à vida, incorporando conscientemente o processo natural de formação
dos símbolos arquetípicos, não é difícil
ela se identificar com esse mitologema.
O Si-mesmo
é aquilo que leva o indivíduo a sacrificar-se e até
mesmo compele a oferecer o sacrifício. O Si-mesmo é o sacrificante
e o indivíduo é a vítima sacrificada. Mas o que se
sacrifica é a pretensão egoística e com isso o indivíduo
se sacrifica a si mesmo.
O cristão
dá sentido aos seus sofrimentos identificando-os com o sofrimento
de Cristo (imitatio Cristi) e o hindu na realização
de seu dharma, seu dever por ter se manifestado.
Jung comenta
que "nós ganhamos a nós mesmos com o auto sacrifício,
ganhamos o Si-mesmo, pois só damos o que temos" e com isso
o indivíduo se desliga das projeções inconscientes
decorrentes da participatión mystique, passando então
do estágio de dissolução do inconsciente para o estágio
consciente e do estágio em potência para o estágio
em ato, tornando-se assim o homem que ele é.
Quando ocorre
esse fenômeno, o Si-mesmo funciona como um princípio unificador
dos opostos dentro da psique humana, unindo as poderosas forças
inconscientes na consciência e tornando o indivíduo um ser
único e total.
"Nos sonhos e imagens interiores esse processo de tornar-se homem é representado, de um lado, como a concentração de várias unidades, como a reunião de algo que está disperso e, de outro, como um processo em que algo que sempre existiu vai surgindo pouco a pouco e se tornando cada vez mais claro.
Dessa forma,
o Si-mesmo é também a mais importante função
de orientação que pode-se contar. Essa função,
durante toda nossa vida, nos direciona e prepara para um desenvolvimento
da personalidade em direção a uma meta, que é a integração
da consciência com o inconsciente coletivo (Individuação)
_onde acontece a união máxima com a totalidade na hora de
nossa morte.
Esse processo
de conscientização, enquanto reunião de partes dispersas
é uma operação consciente e voluntária do
eu, mas por outro lado é um afloramento espontâneo de algo
que já existia em nós mesmos.
Mas, na medida
em que a personalidade ainda é potencial, é possível
chama-la de transcendente, e na medida em que é inconsciente, não
se diferencia dos conteúdos de suas projeções causando
na consciência os símbolos cósmicos, como veremos
adiante.
Devido à
qualidade numinosa deste arquétipo, ele acaba se manifestando no
centro de todos os sistemas monoteístas e monistas e, por esta
razão, o símbolo da totalidade do Si-mesmo não tem
diferença da imagem de Deus ou, para ser mais preciso, ela representa
o oposto complementar a imago Dei.
"Podemos agora interpretar o aspecto da imagem divina da quaternidade como um reflexo do Si-mesmo ou, inversamente, o Si-mesmo como uma imago Dei. Ambas as interpretações são psicologicamente verdadeiras, pois o Si-mesmo, pelo fato de só poder ser percebido no plano subjetivo como a singularidade mais íntima possível, precisa de uma totalidade como fundo, sem a qual não poderá, de forma alguma realizar-se como indivíduo absoluto. Para sermos mais exatos: o Si-mesmo deveria ser concebido com o extremo oposto de Deus (Jung).
Os símbolos
totalitários do Si-mesmo significam tanto um, como outro aspecto
e por isso é um paradoxo, abrangendo todos os opostos possíveis,
do maior e do menor, vida e morte, corpo e espírito (psique), unidade
x pluralidade, claro x escuro, matéria x alma (anima), céu
x terra, fogo x água, etc.
Devido à
sua poderosa força integrativa, é representado geralmente
como o Uróboro, a serpente que come a própria cauda. É
o hierosgamos, as núpcias sagradas (união) de todos os opostos.
A projeção
deste complexo no Universo gera um sentimento de sincronicidade com a
natureza, pois é reconhecida a semelhança entre o micro
e o macrocosmo. No antigo gnosticismo este sentimento foi nomeado como
o microcosmo (individuum) em oposição complementar
ao macrocosmo (Universo). Isto porque eles compreendiam que dentro do
indivíduo estava contido todas as coisas e vice-versa.
Uma representação
comum na qual Jung se refere constantemente, é o conceito de âtman
no Oriente, que possui uma parte coletiva (Paramâtmâ)
e uma parte individual (Jivâtmâ), exatamente como o
Si-mesmo.
Segundo a antiga
tradição da Jñana-Yoga, este âtman
(Si-mesmo) é conhecido como um centro de energia formado pela consciência
pura. Segundo Shrî Aurobindo, este centro é chamado o mais
alto Purusha [o Desfrutador, ou Vidente].
As traduções
aproximadas são Desfrutador ou Vidente, mas também podemos
compreendê-lo como o senhor dos sentidos (Ishvara), a fonte
do prâna, a força vital da consciência,
como a noção libido ou energia psíquica.
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Virat-Rupa / Personificação do Universo |
Ele é
chamado avatâr (encarnação) da divindade Govinda.
Este Vishnu é a Superalma (Paramâtmâ), base do corpo
físico universal, e o fato de vir acompanhado com a serpente significa
que ele é também a força vital que anima os seres
vivos e o Universo. É o Homem cósmico total (virat-rupa)
e a Superalma de todos os seres.
Na forma conhecida como virat-rupa (a forma universal representada na imagem ao lado) descrita no Rgveda 10,90: Ele possui "mil cabeças, mil olhos e mil pés. Ele abarca a terra inteira e domina o espaço de dez dedos" (Hillebrandt, Lieder der Rgveda, p. 130), ou seja, abarca as grandezas do maior ao menor.
Na forma conhecida como virat-rupa (a forma universal representada na imagem ao lado) descrita no Rgveda 10,90: Ele possui "mil cabeças, mil olhos e mil pés. Ele abarca a terra inteira e domina o espaço de dez dedos" (Hillebrandt, Lieder der Rgveda, p. 130), ou seja, abarca as grandezas do maior ao menor.
Psicologicamente,
estas representações devem ser entendidas como uma manifestação
da dupla natureza do Si-mesmo: o inconsciente coletivo que busca manifestar-se
na individualidade consciente como oposição à sua
própria totalidade inconsciente.
Para o hinduísmo,
portanto, a manifestação do inconsciente se dá através
do Purusha desfrutador, que se manifesta na dupla natureza dos
opostos.
Por essa dupla
natureza paradoxal, o Paramâtmâ e o Jivâtmâ são
compreendidos como qualitativamente semelhantes, mas quantitativamente
diferentes, uma é onisciente e a outra é consciência
concentrada.
Uma é conhecida como o Vidente ou Observador e a outra é o objeto observado. Essa dualidade também pode ser vista como a junção da alma com o corpo.
Para Shrî
Aurobindo Âtmâ "é o original e transcendente si-mesmo
(self), enquanto a Jivâtmâ é uma mera réplica
e é associada ao individual. [...] A Jivâtmâ não
é o verdadeiro si-mesmo, pois a verdadeira forma é eterna
e livre".
A unificação
das duas só ocorre com este sentimento de Homem-Deus, que é
a divinização das ações humanas para com a
vida. Isso equivale a reconhecer nossa natureza 'espiritual' infinita
encarnando no corpo, no 'Verbo'.
É a
chamada plenificação do homem que surge do processo de Individuação,
onde se atinge, no mais alto grau possível, a unidade da personalidade
como um todo.
Dessa forma,
como já visto, todos esses símbolos do Si-mesmo acabam apontando
ou direcionando as nossas ações diárias para uma
meta fisiológica instintiva (arquetípica), que é
tomar consciência da totalidade do Si-mesmo, na busca pelo ser humano
total, que integrou em si mesmo o Universo ou o que chamamos de Deus.
Como imagem do instinto, já vimos que o arquétipo do Si-mesmo vem representado em figuras como Jesus, Buddha, Krishna, etc. É o 'alvo espiritual' para o qual tende toda a natureza do homem.
Como imagem do instinto, já vimos que o arquétipo do Si-mesmo vem representado em figuras como Jesus, Buddha, Krishna, etc. É o 'alvo espiritual' para o qual tende toda a natureza do homem.
Porém,
não é fácil usar a palavra "espiritual"
sem que ela venha carregada de preconceito, mas usar o termo inconsciente
coletivo não o representa corretamente, pois lhe falta o caráter
primitivo e numinoso.
Digo isso porque
essa absorção máxima com a totalidade ocorre em dois
momentos importantes: a mais comum ocorre no momento da morte. Mas se
esta experiência acaba acontecendo em vida, ocorre uma espécie
de renascimento psíquico, que é representada como uma "absorção"
da consciência no inconsciente coletivo ou neste chamado "mundo
espiritual".
Portanto, os
símbolos e mitos que se manifestam na consciência possuem
a função de orientar o indivíduo para este momento
de 'imersão na totalidade' e que vai, gradualmente, se desenvolvendo
na consciência. Por isso a consciência traz consigo uma espécie
de "responsabilidade", pois é aí que entra o dogma.
Este dogma
(dharma) nos prepara para que, no momento da morte, não
deixemos coisas para trás ou por terminar. É esta espécie
de responsabilidade que se apresenta para alguns cobrando um preço
pelas ações feitas durante a vida com base em uma espécie
de "código de conduta".
Se por acaso
a pessoa seguiu este código, e chegou ao final de sua vida com
um sentimento de 'tudo terminado', então essa pessoa aproximou-se
da meta da Individuação. Caso contrário, não.
Jung comenta a esse respeito:
Jung comenta a esse respeito:
"O grau de consciência atingido, qualquer que seja ele, constitui, ao que me parece, o limite superior ao qual os mortos podem acender. Daí a grande significação da vida terrestre e o valor considerável daquilo que o homem leva daqui 'para o outro lado' no momento da sua morte. É somente aqui na vida terrestre que se chocam os contrários, que o nível da consciência pode elevar-se. Essa parece ser a tarefa metafísica do homem _mas sem mitologein ['mitologizar'] apenas pode cumpri-la parcialmente.
No mantra dez
do Shrî Isopanisad está dito: "os sábios explicaram
que o cultivo de conhecimento dá um resultado, e o cultivo da ignorância
da outro resultado diferente".
Quem buscou
o conhecimento da dualidade, conseguindo passar pelos testes morais da
vida sem deixar-se sucumbir à sombra, relata um sentimento de alívio
por ter cumprindo seu dever para com o dogma vigente em sua cultura, encontrando
seu próprio mito e alcançando o "reino de Deus".
Caso contrário,
parece que este momento não é tão bom assim e causa
muito medo. É chamado na mitologia como o Dia do Juízo Final
cristão ou no tribunal de Yamaraja dos hindus. É o tribunal
de Osíris do antigo Egito, onde o coração do morto
era pesado, e, se fosse mais pesado que a pena de Maat (Justiça),
sua alma seria devorada e ele deixaria de existir para sempre (imagem
abaixo).
![]() |
O Dia do Juízo Final |
Fonte: http://www.psicoanalitica.com.br
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