24 de set. de 2010

Aquilo que Não tem Nome...

Pergunta: Como encontrastes Deus?

Krishnamurti: Como sabeis, senhor, que eu encontrei Deus? Não riais, senhores. Esta pergunta é muito séria. Senhor, Deus pode ser conhecido? Deus pode ser achado? Prestai atenção, por favor. Deus é uma coisa que anda perdida e que temos de achar? Pode-se reconhecer aquela Realidade, aquele Deus? Se podeis reconhecê-la, então já tendes conhecimento dela; e se já tendes conhecimento dela, não é coisa nova. Se sois capaz de conhecer (experience) Deus, a Verdade, essa experiência é gerada pelo passado, e por conseguinte já não é a verdade e, sim, meramente, uma “projeção” da memória. A mente é produto do passado, do conhecimento, da experiência, do tempo; a mente pode criar Deus; ela pode dizer: “sei que isto é Deus”, “sei que tive a experiência de Deus”, “sei que há Deus, a voz de Deus me fala”. Mas isso é só memória, - a antiga reação do vosso condicionamento. A mente pode inventar Deus e pode experimentar Deus. A mente que é resultado do conhecido pode “projetar-se” e criar toda a sorte de imagens e visões; tudo isso, porém, se acha na esfera do conhecido. Deus não pode ser conhecido. Ele é totalmente desconhecido. Não pode ser “experimentado”. Se quando não há “experimentador” e não há “experiência”, só então pode a Realidade aparecer. É só quando a mente se acha no “estado do desconhecido” que pode surgir o desconhecido. Só depois de se apagar toda experiência, todo conhecimento, está a mente verdadeiramente tranqüila, silenciosa, e nessa tranqüilidade, que é imensurável, nessa tranqüilidade, nasce Aquilo que não tem nome.

Livro: As Ilusões da Mente (páginas 55, 56)
Autor: J. Krishnamurti

 

  

20 de set. de 2010

O Espelho – Portal para o Si-mesmo

Texto de Paulo Urban, publicado na Revista Planeta, edição nº 364, janeiro/2003
 Paulo Urban é médico psiquiatra e Psicoterapeuta

http://4.bp.blogspot.com/_pW-6RQT09aU/TBZh2a9WbwI/AAAAAAAAAQY/hVMptjGDeNc/s1600/rorschach1.jpgUm dos mais importantes objetos mágicos a ser considerado é o espelho. Dada à sua particularidade de refletir imagens, perfeitas ou deformadas, iluminadas ou à penumbra, no espelho colhemos aquilo que somos, bem como tudo aquilo que deixamos de ser.

Segundo tradições esotéricas orientais e ocidentais, o espelho é instrumento da iluminação, fazendo-se presente quase que invariavelmente nos rituais iniciáticos preliminares, destinado a causar certo medo e estranheza a cada um dos neófitos que, à luz de velas, diante dele se coloca, na pretensão de vencer os terrores do primeiro umbral e penetrar definitivamente na longa senda do autoconhecimento.

À frente do espelho, inevitavelmente, o homem se depara consigo mesmo, e pode perscrutar-se além da simples fachada com que se mostra ao mundo. Isto porque o espelho, assim concebem os místicos, parece estar dotado de vida própria, capaz que é de instigar nosso psiquismo e estimular o intelecto a perceber melhor os detalhes da alma, ocultos por detrás da “face aparente” inserida no mundo sensível, projetada como imagem.

Evidentemente, com o intuito de ressaltar essa incrível propriedade comum aos homens e ao espelho, optamos por introduzir o leitor a este tema por uma via, antes de tudo, de natureza reflexiva. Mas no que consiste, de fato, a reflexão? Além da simples replicação de um objeto real por meio de sua imagem, a reflexão, filosoficamente, representa a capacidade exclusivamente humana de pensar o próprio pensamento, isto é, de abstrair-se e ao mesmo tempo aprofundar-se em torno de uma questão. Refletir, mais do que um exercício lógico, meramente racional, leva-nos a uma via de ascese espiritual, pela qual podemos alçar-nos a um estado psíquico transcendente, superior àquele onde comumente trabalha o intelecto. 

http://www.esotericpeople.com/hot_pics/all/eye_universe.jpgA palavra reflexo se constrói a partir verbo latino flectere, que se traduz por “fletir” ou “curvar-se”, e pelo antepositivo re, que expressa aquilo que se faz “novamente” ou “para trás”. Refletir, portanto, etimologicamente é “inclinar-se para trás”. Jung bem definiu que refletir não deve ser entendido como o simples ato de pensar, senão como uma atitude; a reflexão nos permite regrar com prudência nosso relativo arbítrio frente às leis da natureza. Pela reflexão podemos aprofundar as experiências ou descobertas que vivenciamos, sobre as quais deitamos antigas impressões colhidas em nosso caminho, de modo a confrontarmos o velho com o novo em busca de um denominador comum seguro que nos facilite o passo adiante na jornada. Pela reflexão, buscamos compreender o outro lado de todas as coisas, seja do ser, do Universo, ou do oculto inacessível.

Não por acaso os antigos se valiam duplamente do espelho, fosse para o exercício de práticas mágicas, fosse para, por meio dele, observar o firmamento.  A profissão de olhar o céu é das mais arcaicas; dela dependeu a sobrevivência das culturas agrárias que primeiro se estabeleceram. Os caldeus, por exemplo, precursores da astrologia, já a praticavam bem antes de 6 mil a.C. Os egípcios igualmente aprenderam a ler o céu e estudar o comportamento dos astros por meio de amplos espelhos d’água, fossem estes a superfície de lagos serenos ou o diâmetro circundado por tachos de bronze amplos o bastante para permitir o estudo de determinada área celeste.

Os gregos assimilaram dos egípcios essa técnica e aplicavam o verbo teorém à arte de observar o céu, sendo chamados de teoreticós os sábios que teciam comentários e especulavam acerca dos astros, de onde derivou o termo “teorema”. O correlato latino a designar essa prática é considerare, que originalmente significava “examinar com cuidado e respeito religioso os astros, visto que o vocábulo provém de sidus (estrela). Curiosamente, considerare é sinônimo de speculare, verbo latino dedicado aos “especuladores”, isto é, àqueles que refletiam e teorizavam acerca de algo, principalmente sobre questões astronômicas e astrológicas, já que estas ciências não se diferenciaram senão recentemente, a partir do século XVII. 

Dessa digressão semântica resta a oportuna lição: sempre que consideramos alguma coisa, em verdade nos curvamos humildemente para melhor refletir sobre questões que lhe são inerentes; de mesmo modo, considerar alguém é levar em conta a luz do outro; ademais, a consideração “em si” se revela uma sábia receita capaz de universalmente ensinar a humanidade, inspirada pelas luzes do céu, a respeitar-se como um todo. Considere o leitor, por favor, esta questão. Reflitamos juntos sobre o nosso tempo.

Reforcemos os pressupostos mistérios desse artefato místico: cumpre dizer que ninguém sabe com exatidão qual a origem do espelho. Sabe-se, é claro, que está atrelada à descoberta do vidro que, segundo Plínio (23 a 79 d.C.), ocorreu primeiramente entre os fenícios, conforme nos relata o cronista no livro 36 de sua Enciclopédia.

http://t0.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcR2Me02SdFJQgb-47UiNqt9TOv2zB-R6ZUSm0MrGCyHUItb8oY&t=1&usg=__v5DjyJVrO37gYdaxD8IArpqaYFY=Mercadores fenícios voltavam em caravana do Egito e marchavam pelo deserto em direção a Sídon, quando se detiveram às margens do rio Belus para pernoitar. Traziam em seus camelos um farto carregamento de natrão, mistura rica em carbonato de sódio, com a qual tingiam suas lãs. Ao acenderem o fogo, valeram-se dos maiores pedaços de natrão para, sobre eles, apoiar os vasos com a caça a ser cozida. Após comerem, adormeceram ao pé do fogo. Pela manhã, em lugar dos blocos de natrão, encontraram pedras brilhantes e transparentes, como se fossem enormes pedras preciosas, frente às quais se prostraram acreditando que a transformação fosse obra de algum gênio ou divindade. Mas Zelu, sábio chefe, percebeu que sob os blocos de natrão a areia (rica em óxido de silício) desaparecera. Ordenou que se reacendesse o fogo e durante toda a tarde repetiram o processo da queima, até que viram escorrer das cinzas da areia e do natrão uma esteira de líquido rubro fumegante. Antes que a mistura incandescente se solidificasse, Zelu a plasmou habilmente com sua adaga, moldando um balão transparente diante da estupefação de todos: havia sido descoberto o vidro!

Achados arqueológicos, entretanto, revelam contas de vidro manufaturadas, fabricadas pelos egípcios antes mesmo de 3.000 a.C., na transição da idade do cobre para a do bronze. Acredita-se que os egípcios já dominassem a técnica de soprar o vidro por volta de 1.400 a.C., a partir da XVIII dinastia. Tal segredo, inicialmente propriedade exclusiva dos sacerdotes de Tebas, está evidentemente arraigado aos primórdios da alquimia. Tebas tornou-se o grande centro de produção de pérolas de vidro coloridas, a imitar pedras preciosas, pertencentes aos tesouros de muitos faraós e comumente encontradas nos túmulos de Tel-el-Amarna.  Cite-se ainda que o corpo de Ramsés II, que reinou de 1290 a 1224 a.C., repousava num cofre de vidro, conforme o encontrou o arqueólogo Gaston Maspero, em 1886.

Certo também é que fenícios e egípcios fabricavam espelhos de bronze desde 2000 a.C. e seu uso sempre esteve atrelado à prática da magia. Uma das mais arcaicas técnicas de adivinhação envolve o uso do espelho mágico. Não é à toa que o moto restou imortalizado em vários contos de fadas, mais destacado na história de Branca de Neve, na qual a bruxa madrasta tem o poder de invocar, por meio de imprecações, o gênio do espelho que lhe permite saber tudo o que ocorre à sua volta.

Tal procedimento, que remonta a certas classes de iniciados do antigo Egito, também era praticado entre as tribos magistas do velho mundo persa e, particularmente, alcançou fama entre as temíveis feiticeiras da Tessália, que teriam ensinado ao sábio Pitágoras (século VI a.C.) sua arte. Entre os gregos, tal técnica recebeu o nome de catoptromancia, ou seja, adivinhação (mantéia) pelo espelho (cátoptron). Pitágoras, certas lendas apoiam, possuía seu espelho mágico. Expondo o instrumento sob a luz da lua cheia, absorto pelo reflexo, o mestre deixava sua mente divagar e, assim, vislumbrava o futuro.

Práticas mágicas semelhantes valem-se do espelho como instrumento para interpelar os mortos, buscando por meio dele encontrar esclarecimentos banhados na sabedoria ancestral. O inglês John Dee (1527-1608), médico alquimista e filósofo, polêmica figura elisabetiana, dizia praticar a necromancia e invocar os espíritos através de um espelho negro, conforme fora iniciado nessa arte pelo ocultista Edward Kelly, falecido em 1597. Anos após a morte de Dee, publicou-se seu livro de memórias, intitulado “Verdadeiro e fiel relato sobre quanto houve por muitos anos entre o Dr. Dee e alguns espíritos”.

O espelhoa história do ocultismo nos revela, pressupõe-se estar dotado de propriedades mágicas a nos revelar um portal para realidades outras, invertidas ou transcendentes. Quem primeiro explorou o tema na literatura foi o matemático Charles L. Dodgson (1832-1898), imortalizado sob o pseudônimo de Lewis Carroll, autor de Alice no País do Espelho, que, sob o véu de uma história infantil, soube guardar toda uma profunda alegoria hermético-alquímica, assunto que poderemos tratar noutra matéria. 
Na mitologia, contudo, quem primeiro se projetou para dentro do espelho foi o jovem Narciso, o mais belo dos mortais, filho do rio Cefiso e da ninfa Liríope. Mas competir com os deuses em beleza era afronta imperdoável, veleidade a ser tragicamente punida. Certa feita, sedento, ao curvar-se para tomar água na profunda fonte de Téspias, Narciso, sem se dar conta de que via sua própria imagem, apaixona-se pelo rosto refletido e mergulha em busca dele para nunca mais voltar. Claro, o mito aponta para as armadilhas da vaidade e do solepcismo (o eu como única realidade), mas uma outra leitura pode ser aqui proposta, a espelhar a mais comum. 

http://personal.us.es/jcordero/LUZ/images/obras/Caravaggio2.jpgNarciso, cuja sina assemelha-se muito com a de Édipo, pois também ele se perde no exato momento em que se encontra, mergulha na fonte nem tanto por excesso de vaidade, mas sim por levar ao extremo seu instinto de reflexão, do qual toda alma está dotada. Isto é, o jovem se atira em direção a si mesmo, sem maiores critérios que o protejam nesse ato natural desenfreado de querer se conhecer profundamente. Narciso é vítima de seu arroubo de atividade endo-psíquica. Ele se afoga em sua própria reflexão; alcança ousadamente o portal da transcendência, mas se deixa perder ou diluir nas águas do grande inconsciente. A língua francesa, precisamente, expressa essa verdade: espelho em francês se diz miroir, palavra derivada do verbo mirermirage (miragem), que bem expressa a ilusão que nos cerca, implícita em nossa realidade, no mundo sensível em que vivemos, mera imagem imperfeita do mundo divino que nos é absolutamente transcendente. (ver, olhar atentamente), de onde se extrai a palavra

De certo modo, Narciso traduz na escala microcósmica e humana o eterno mito da alma que, desejando conhecer-se, resolve projetar-se na matéria, mero reflexo de si mesma, estado este capaz, entretanto, de lhe oferecer experiências novas que sua condição divina e pura nunca lhe daria.

Mergulhando no espelho da vida, de Narciso ou de Alice, a alma assume seu desejo pelo corpo e em sua divina vontade aceita humildemente sofrer a experiência da natureza humana; admite trocar o Uno pela multiplicidade, o universal pelo particular, e satisfaz-se em separar-se de seu eterno estado imponderável para assumir a angustiante e breve sina da existência temporânea. 

http://afilosofia.no.sapo.pt/platao4.jpgO tema da alma, considerada como espelho por Platão e Plotino, faculta ao Uno Absoluto expressar-se por intermédio de cada criatura, isto é, permite a Deus que se visualize nas múltiplas faces sobre as quais Ele projeta sua imagem, e que se realize ao provar da própria criação. Consoante a máxima alquímica que diz que assim como é em cima, é embaixo, assim como é embaixo é em cima, para assim realizar os milagres da unidade, os místicos balizam que meditar regularmente em frente de um espelho, revela-se uma prática de cotidiana sabedoria. O espelho nos aproxima de nós mesmos, provoca o ego a mergulhar em seu próprio abismo e o conduz, a partir disso, pelo portal do imponderável que, uma vez cruzado, nos eleva a outros níveis de expressão e consciência.

Claro, não devemos nos deixar tomar pelo instinto reflexivo patológico de Narciso, mas se soubermos experimentar com leveza e intuição a densidade do mundo espe(ta)cular de Alice, poderemos, sem maiores riscos de perder o senso de realidade, explorar sabiamente todas as portas ocultas que ela contém. Nada melhor que um espelho para nos colocar diante e bem dentro de nós mesmos!


13 de set. de 2010

A Hipóstase dos Arcontes (A Realidade dos Regentes)

http://t3.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcRyOrWZ1v_oVy1vhrvT66T66wzhoeAFK19XZMPyp4moXKc6MhA&t=1&usg=__rrJ6tJAHyIeQpZKFNOCBwJc8I98=A Hipóstase dos Arcontes ou A Realidade dos Regentes é uma exegese no Livro do Gênesis do primeiro ao sexto capítulo[1] e expressa uma mitologia gnóstica da criação do cosmos e da humanidade. O texto foi encontrado na Biblioteca de Nag HammadiCodex II) em 1945, numa tradução copta[2]. O original nunca foi encontrado e esta é a única versão conhecida. Tentativamente datado no século II dC[1], acredita-se que ele se origina de um período de transição no Gnosticismo, quando estava se convertendo de uma fase puramente mística em uma mais filosófica. O início e a conclusão do documento são do gnosticismo cristão, mas o resto do material é uma narrativa mitológica da origem e natureza dos poderes arcônticos populando os céus entre a Terra e a Ogdóade, e como o destino dos homens é afetado por estes eventos primordiais:

A respeito da realidade das autoridades, (inspirado) pelo Espírito do Pai da verdade, o grande apóstolo - se referindo às "autoridades da escuridão" - nos disse que "nossa disputa não é contra carne e sangue; mais propriamente, as autoridades do universo e os espíritos da perversidade." Eu enviei isto a você porque você indaga sobre a realidade das autoridades.
 
O chefe deles é cego; rândevido ao poder dele e sua ignocia e sua arrogância ele disse, com o poder dele, "Eu é que sou Deus; não há outro além de mim." Quando ele disse isto, ele pecou contra a totalidade. E esta declaração chegou até a incorruptibilidade; então houve uma voz que partiu da incorruptibilidade, dizendo, "Você está enganado, Samael" - que é, "deus dos cegos."
 
Os pensamentos dele se cegaram. E, tendo expelido seu poder - ou seja, a blasfêmia que ele havia dito - ele prosseguiu até o Caos e o Abismo, que é a mãe dele, instigado pela Pistis Sofia. E ela estabeleceu cada um da prole dele de acordo com o poder deles - segundo o padrão dos reinos que estão acima dos céus, pois, a partir do universo invisível, o universo visível foi inventado.
 
Assim que a incorruptibilidade olhou para baixo na região das águas, sua imagem apareceu nas águas; e as autoridades da escuridão se apaixonaram por ela. Mas eles não puderam se apropriar daquela imagem que havia aparecido para eles nas águas, por causa da fraqueza deles - já que seres que meramente possuem uma alma não podem se apropriar daqueles que possuem um Espírito - pois eles eram do inferior, enquanto ela era de cima. Esta é a razão pela qual a "incorruptibilidade olhou para baixo na região (etc.)": para que, pela vontade do Pai, ela possa trazer a totalidade para a união com a luz.
 
Os regentes planejaram e disseram, "Venham, vamos criar um homem com o solo da terra." Eles modelaram a criatura deles como sendo completamente da terra. Agora os regentes [...] corpo [...] eles têm [...] fêmea [...] é [...] com o rosto de um animal. Eles haviam tomado um pouco de solo da terra, e modelaram o homem deles segundo o corpo deles, e segundo a imagem de Deus que havia aparecido para eles nas águas. Eles disseram, "Venham, vamos dominar ele por meio da forma que nós modelamos, para que ela veja sua contraparte masculina [...], e nós possamos capturá-lo com a forma que nós modelamos" - não compreendendo a força de Deus, por causa da impotência deles. E ele soprou no rosto dele; e o homem obteve uma alma (e permaneceu) no chão muitos dias. Mas eles não puderam fazê-lo se erguer por causa da impotência deles. Como vendavais eles persistiram soprando, tentando capturar aquela imagem que apareceu para eles nas águas. E eles não conheciam a identidade daquele poder.
 
Agora todas estas coisas decorreram pela vontade do Pai da totalidade. Posteriormente, o Espírito viu o homem dotado de alma no chão. E o Espírito veio adiante da Terra de Adamantina; ele desceu e veio habitar dentro dele, e aquele homem se tornou uma alma viva, e chamou-se Adão. Já que ele foi visto se movendo sobre o chão, uma voz partiu da incorruptibilidade para o auxílio de Adão; e os regentes reuniram todos os animais da terra e todos os pássaros do céu e os trouxeram para Adão, para ver como ele iria chamá-los, para que ele desse um nome a cada um dos pássaros e a todos os animais.
 
Eles pegaram Adão e colocaram ele no jardim, para que ele o cultivasse e vigiasse. E os regentes emitiram um comando a ele, dizendo, "Você comerá de toda árvore no jardim; mas da árvore do reconhecimento do bem e do mal não coma, nem a toque; pois no dia que você comer dela, com morte você morrerá."
Eles [...] isto. Eles não entendem o que eles disseram para ele; pelo contrário, pela vontade do Pai, eles disseram isto de um modo para que ele de fato coma, e para que Adão não os considerasse do mesmo jeito que um homem de natureza totalmente material consideraria.
 
Os regentes se consultaram uns com os outros e disseram, "Venham, vamos causar que um sono profundo caia sobre Adão." E ele dormiu. - Agora o sono profundo que eles "causaram que caísse sobre ele, e ele dormiu" é a Ignorância. - Eles abriram a lateral dele como uma mulher viva. E eles montaram a lateral dele com um pouco de carne no lugar dela, e Adão ficou dotado apenas de alma.
 
E a mulher dotada de Espírito veio até ele e falou com ele, dizendo, "Levante-se, Adão." E quando ele a viu, ele disse, "Foi você quem me deu vida; você será chamada 'mãe dos vivos'. - Pois ela que é a minha mãe. Ela que é a obstetra, a mulher, e ela que deu à luz."
 
Então as autoridades vieram até o Adão deles. E quando eles viram a contraparte feminina dele falando com ele, eles ficaram agitados com grande agitação; e eles se apaixonaram por ela. Eles disseram uns aos outros, "Venham, vamos espalhar nossa semente nela," e eles a perseguiram. E ela riu deles pela tolice e cegueira deles; e nas garras deles ela se tornou uma árvore, e deixou diante deles o reflexo indistinto dela aparentando a si mesma; e eles o violaram de forma imunda. - E eles violaram o sinal da voz dela, de modo que, por meio da forma que eles modelaram, junto com a própria imagem deles, eles se tornaram propensos à condenação.
Então o princípio espiritual feminino entrou na águia, que é o instrutor; e ele os ensinou, dizendo, "O que ele disse para você? Foi, 'Você comerá de toda árvore no jardim; mas - da árvore do reconhecimento do bem e do mal não coma'?"

A mulher carnal disse, "Ele disse não somente, 'Não coma', mas até 'Não a toque; pois no dia que você comer dela, com morte você morrerá.'"


E a águia, o instrutor, disse, "Com morte vocês não irão morrer; pois foi por ciúmes que ele disse isto a vocês. Pelo contrário, seus olhos se abrirão e vocês se tornarão como deuses, reconhecendo o mal e o bem." E o princípio instrutor feminino foi removido da águia, e ela o abandonou, uma coisa meramente da terra.
E a mulher carnal pegou da árvore e comeu; e ela deu ao marido dela também; e estes seres que possuíam apenas uma alma, comeram. E a imperfeição deles se tornou evidente na falta de sabedoria deles; e eles reconheceram que estavam despidos do elemento espiritual, e pegaram folhas de figueira e amarraram em seus quadris.

 
Então o regente chefe (que é a serpente) veio; e ele disse, "Adão! Onde você está?" - porque ele não entendeu o que tinha acontecido. E Adão disse, "Eu ouvi a sua voz e tive medo porque eu estava nu, e eu me escondi."

O regente disse, "Por que você se escondeu, a menos que é porque você comeu da única árvore que eu ordenei que você não comesse? E você comeu!"
Adão disse, "A mulher que você me deu, ela me ofereceu e eu comi." E o regente arrogante amaldiçoou a mulher.


A mulher disse, "Foi a águia que me induziu e eu comi." Eles se voltaram para a águia e amaldiçoaram o reflexo indistinto dela, [...] impotentes, não compreendendo que era uma forma que eles mesmos haviam modelado. Desde aquele dia, a águia ficou sob a maldição das autoridades, até que o regente todo-poderoso viesse, aquela maldição caiu sobre a águia.

 
Eles se voltaram para o Adão deles, e o tomaram e expulsaram do jardim junto com sua esposa; pois eles não possuem bênção, já que eles também estão sob a maldição. Além do mais, ele jogou a humanidade em grande distração e em uma vida de dificuldades, para que a humanidade deles possa estar ocupada com afazeres mundanos, e não possa ter a oportunidade de se dedicar ao Espírito sagrado.
 
Agora em seguida, ela gerou Caim, o filho deles, e Caim cultivava a terra. Logo após isso ele reconheceu sua esposa, engravidando novamente, ela gerou Abel; e Abel era um pastor de ovelhas. Agora Caim apresentou das colheitas do campo dele, mas Abel apresentou uma oferenda dentre suas ovelhas. Então Sabaoth, que é chamado Senhor das Forças, olhou sobre as oferendas votivas de Abel; mas ele não aceitou as oferendas votivas de Caim. E o Caim carnal perseguiu Abel, seu irmão.
 
E Sabaoth disse para Caim, "Onde está Abel, teu irmão?"
Ele respondeu dizendo, "Eu sou, então, zelador do meu irmão?"
Então Sabaoth disse para Caim, "Escute! A voz do sangue do teu irmão está clamando para mim! Você pecou com tua boca. Isto retornará para ti: qualquer um que matar Caim soltará sete vinganças, e você existirá gemendo e tremendo sobre a terra."

 
E Adão reconheceu sua contraparte feminina Eva, e ela ficou grávida, e gerou Seth para Adão. E ela disse, "Eu gerei um homem através de Deus, no lugar de Abel." Novamente Eva engravidou, e ela gerou Norea. E ela disse, "Ele gerou em mim uma virgem como uma assistência para muitas gerações da humanidade." Ela é a virgem a quem as forças não corromperam.
 
Então aqueles homens começaram a se multiplicar e aperfeiçoar. Os regentes se consultaram uns com os outros e disseram, "Venham, vamos causar um dilúvio com nossas mãos e eliminar toda carne, desde homem até animal." Mas quando o Senhor das Forças soube da decisão deles, ele disse para Noé, "Construa para vocês uma arca com madeira que não apodreça e se escondam nela - você e os meus filhos, e os animais, e os pássaros do céu, do pequeno ao grande - e coloque-a sobre o Monte Senhor."
 
Então Orea veio até ele, querendo embarcar na arca. E quando ele não a deixou, ela soprou sobre a arca e ocasionou que ela fosse consumida pelo fogo. Novamente ele fez a arca, por uma segunda vez.
 
Os regentes foram conhecê-la, pretendendo corrompê-la. O chefe supremo deles disse a ela, "A sua mãe Eva veio até nós." Mas Norea virou-se para eles e disse, "São vocês os regentes da escuridão; vocês estão amaldiçoados. E vocês não conheceram a minha mãe; pelo contrário, vocês conheceram a contraparte feminina de vocês. Pois eu não sou descendente de vocês; pelo contrário, é do aeon superior que eu venho."
O regente arrogante virou, com toda a sua força, e o seu semblante se tornou como um [...] preto; ele disse a ela presunçosamente, "Você deve servir a nós, como a sua mãe Eva também serviu; pois me foi dada autoridade sobre todo este universo!" Mas Norea virou-se, com a força do [...]; e numa voz alta, ela exclamou para o alto para o sagrado, o Deus da totalidade, "Resgate-me dos regentes da injustiça e me salve das garras deles - depressa!"
 
O grande anjo eterno desceu do Oitavo Céu e disse a ela, "Por que você está exclamando a Deus? Por que você age com tanta audácia para com o Espírito sagrado?"

Norea disse, "Quem é você?" Os regentes da injustiça haviam se afastado dela.
Ele disse, "Eu que sou Eleleth, sagacidade, o grande anjo que fica na presença do Espírito sagrado. Eu fui enviado para falar com você e salvá-la das garras dos malfeitores. E eu irei te ensinar sobre a sua raiz."
(Aparentemente Norea falando agora) Agora quanto a esse anjo, eu não posso expressar o poder dele: sua aparência é como ouro fino e seu traje é como neve. Não, deveras, minha boca não se porta a falar do poder e da aparência do rosto dele!
 
Eleleth, o grande anjo, falou comigo. "Sou eu," ele disse, "que sou compreensão. Eu sou um dos quatro doadores de luz, que ficam na presença do grande Espírito invisível. Você acha que estes regentes têm algum poder sobre você? Nenhum deles pode prevalecer contra a raiz da verdade; pois foi por ela que ele apareceu nos últimos tempos; e estas autoridades serão restringidas. E estas autoridades não podem te corromper nem corromper aquela geração, pois sua residência é na incorruptibilidade, onde o Espírito virgem habita, que é superior às autoridades do Caos e ao universo deles."
 
Mas eu disse, "Senhor, me ensine sobre a capacidade destas autoridades - como eles surgiram, e por qual tipo de gênesis, e de que material, e quem criou eles e a força deles?"
 
E o grande anjo Eleleth, compreensão, falou para mim: "Dentro de domínios ilimitados habita a incorruptibilidade. Sofia, que é chamada Pistis, quis criar algo sozinha, sem o cônjuge dela; e o produto dela foi uma coisa celeste. Um véu existe entre o universo de cima e os domínios que estão abaixo, e sombra surgiu abaixo do véu; e essa sombra se tornou matéria; e essa sombra foi projetada separadamente. E o que ela havia criado se tornou um produto na matéria, como um feto abortado. E aquilo assumiu uma forma plástica modelada através da sombra, e se tornou uma besta arrogante parecendo com um leão. E era andrógino, como eu já havia dito, porque foi da matéria que ele derivou.
 
Quando ele abriu os olhos, ele viu uma vasta quantidade de matéria sem limite; e ele se tornou arrogante, dizendo, "Eu é que sou Deus, e não há outro além de mim". Quando ele disse isto, ele pecou contra a totalidade. E uma voz partiu do alto, do reino de poder absoluto, dizendo "Você está enganado, Samael" - que é, 'deus dos cegos'.
 
E ele disse, "Se outra coisa existe antes de mim, que se torne visível para mim!" E imediatamente Sofia esticou o dedo dela e introduziu luz na matéria; e ela prosseguiu para as regiões do Caos. E ela retornou à luz dela; mais uma vez a escuridão [...] matéria.
Este regente, sendo andrógino, criou para si um vasto reino, um tamanho sem limite. E ele contemplou criando filhos de si próprio, e criou para ele mesmo sete filhos, andróginos assim como o pai deles. E ele disse à prole dele, "Eu é que sou o Deus da totalidade."
 
E Zoe (Vida), a filha de Pistis Sofia, exclamou e disse a ele, "Você está enganado, Saclas!" - cujo nome alternativo é Yaldabaoth. Ela soprou no rosto dele, e a respiração dela se tornou um anjo de fogo para ele; e o anjo prendeu Yaldabaoth e o lançou abaixo dentro de Tártaro, abaixo do abismo.
Agora quando o filho dele Sabaoth viu a força daquele anjo, ele se arrependeu e condenou o pai dele e a mãe dele, a matéria. Ele a repugnou, mas ele cantou canções de louvor para cima para Sofia e a filha dela Zoe. E Sofia e Zoe o ergueram e lhe deram o comando do sétimo céu, abaixo do véu, entre, acima, e abaixo. E ele é chamado 'Senhor das Forças, Sabaoth', já que ele está acima das forças do Caos, pois Sofia o estabeleceu.
 
E quando estes eventos aconteceram, ele fez para si próprio uma mansão enorme, e uma congregação de deuses para governarem sobre as línguas das pessoas, e muitos infinitos anjos para atuarem como ministros, e também harpas e liras. E Sofia pegou a filha dela Zoe e a fez sentar à direita dele, para ensiná-lo sobre as coisas que existem no Oitavo Céu; e o anjo da ira ela colocou à esquerda dele. Desde aquele dia, a direita dele tem sido chamada 'vida', e a esquerda veio a representar a injustiça, para o domínio de poder absoluto acima. Foi antes da sua época que eles surgiram.
 
Agora quando Yaldabaoth viu ele (Sabaoth) neste grande esplendor e nesta altura, ele o invejou; e a inveja se tornou um produto andrógino, e esta foi a origem da inveja. E inveja produziu morte; e morte produziu a prole dele, e deu para cada um deles o comando de seu céu; e todos os céus do Caos se tornaram repletos de suas multidões. Mas foi pela vontade do Pai da totalidade que eles todos surgiram - segundo o padrão de todas as coisas superiores - para que a quantia do Caos fosse alcançada.
"Assim, eu te ensinei sobre o padrão dos regentes; e a matéria na qual ele foi expressado; e o pai deles; e o universo deles."
 
Mas eu disse, "Senhor, eu também sou da matéria deles?""
Você, junto com seus descendentes, são do Pai primordial, de cima, da luz imperecível é que as almas deles são provenientes. Por isso as autoridades não podem se aproximar deles, por causa do Espírito da verdade que está presente dentro deles; e todos que se instruíram sobre estas coisas existem como imortais no meio da humanidade mortal. Mesmo assim, esse elemento espalhado não será conhecido agora. Pelo contrário, após três gerações é que isto será reconhecido, e isto os libertou da escravidão do erro das autoridades."
Então eu disse, "Senhor, quanto mais irá demorar?"

Ele me disse, "Até o momento em que o homem verdadeiro, dentro de uma forma modelada, revele a existência do Espírito da verdade, que o Pai enviou.


Então ele ensinará a eles sobre tudo, e ele os ungirá com a unção da vida, dada a ele pela geração sobre a qual não há reino.


Então eles serão libertados do pensamento cego, e eles irão pisar sobre a morte com os pés, pois ela pertence às autoridades, e eles subirão até a luz ilimitada, que é onde este elemento espalhado pertence.
Então as autoridades irão abandonar suas eras, e os anjos deles prantearão sobre a destruição deles, e os demônios deles irão lamentar suas mortes.


Então todas as crianças da luz serão verdadeiramente familiarizadas com a verdade e com a raiz deles, e com o Pai da totalidade e o Espírito sagrado. Eles todos dirão com uma única voz, "A verdade do Pai é justa, e o filho preside sobre a totalidade", e de todos até as eras das eras, "Sagrado - sagrado - sagrado! Amém!'"

Fontes: Wikepédia, HammadiCodex II

              

12 de set. de 2010

As Bases Gnósticas do Pensamento de Jung

por Heloisa Cardoso*


I - INTRODUÇÃO:

http://www.jungmich.org/Copy_of_Jung_photo_8-11-04.jpgA gnose atua sempre como uma subcorrente em relação ao pensamento hegemônico. Ela é o que se mantém oculto, no pólo dialético do ocultar-revelando e do revelar-ocultando, exigindo, desse modo, uma análise hermenêutica para o entendimento de seus pressupostos. Representa, assim, do ponto de vista da compreensão do homem e do mundo, a contracultura e as heresias em cada época, e possivelmente a semente do novo, do que está por vir.

A emergência de uma atitude gnóstica ocorre em relação às questões não respondidas, pelo paradigma hegemônico, e à perda do sentido da vida, com o desmoronamento dos valores, das culturas e instituições. Quando o paradigma já não é mais um referencial operante, quando se carecem de novos pressupostos e novas idéias; então, retoma-se o processo de conscientização para a subida em uma oitava superior, da qual o mito de Prometeu é uma metáfora.

A gnose pode manifestar-se na religião, na filosofia e na política (o mito do salvador da pátria = Hitler). A missão gnóstica é a de revelar o saber oculto, substituindo as trevas pela luz que amplie os níveis de consciência da humanidade. Foram gnoses religiosas: as de Alexandria, o cristianismo, o luteranismo, na atualidade os Brahma Kumaris etc. Nas gnoses filosóficas podem-se incluir o positivismo, o paradigma emergente, os estóicos, Hegel (e o Espírito alienado), Marx (e a dialética de exclusão entre opressores e oprimidos), Nietzshe (com a proclamação da morte de Deuse suas críticas ao racionalismo e ao cristianismo), Heidegger (e o Dasein), Jung (com seus arquétipos do inconsciente coletivo). Entre as gnoses políticas, o marxismo (em suas aplicações à praxis), Bakunin, Lênin, Sorel e o princípio do poder, o fascismo, enfim todas as “mystiques politiques” ou as “religiões políticas” etc.
O pressuposto metafísico da gnose institui o que está em cima como o que está embaixo; o que está dentro, como o que está fora: o microcosmo refletindo o macrocosmo, consoante a fórmula do CORPUS HERMETICUM. Trata-se, então, de estabelecer as correlações e analogias entre as duas realidades que, na verdade, expressam a mesma essência.
 
Do ponto de vista religioso, duas concepções se defrontam com dinâmicas bem diferentes: a religião como religare e como relegere - a primeira caracterizando o aspecto salvador da religião pela fé; a segunda, tentando promover a busca e o encontro com Deus, pelo conhecimento. Trata-se, nesta, do esforço libertador do autoconhecimento; naquela, do messianismo pela salvação coletiva através da fé. Confrontam-se, assim, as religiões oficiais e até de Estado e as religiões de mistérios, de sentido iniciático (os mistérios eleusinos, dionisíacos, órficos, na Grécia; o mitraico, adotado depois pelos militares de Roma; o culto praticado por escravos, o cristianismo em sua origem, o gênero apocalíptico, o maniqueísmo e outras).
Para o gnóstico não há questão proibida, tema tabu ou dogma, menos ainda a verdade revelada através de profetas ou oráculos. Assim, uma característica da gnose religiosa é a eliminação do intermediário autorizado (padre, ministro, pastor...) e a tentativa da experiência direta e, portanto, mística, de Deus. O pressuposto é o da imanência de Deus, habitando na alma humana, sendo dela o mais importante parceiro.

Na verdade o gnóstico já não é mais o buscador, aquele que está à procura das respostas: Ele já tem as respostas. Cristo disse: “Conhecei a verdade e Ela vos libertará!” Os gregos proclamavam: “Conhece-te a ti mesmo e conhecerás a Deus”.

A dicotomia entre essas duas concepções se concretizava, principalmente, pela existência de religiões oficiais ou de Estado versus as religiões de mistérios e o ritos de iniciação. Na verdade, a gnose é uma vivência mais que um simples conhecimento intelectual.
 
A grande questão, pois, colocada à indagação e ao coração do homem é a da origem da dor e do sofrimento do mundo. O próprio abandono do termo grego kosmos - que significa beleza - substituído pelo termo latino mundo, que era o buraco onde se jogavam os detritos na antiga Roma, é um poderoso indicador da radical mudança que se operara no inconsciente coletivo, na passagem do mundo pagão para o mundo cristão. O cristianismo fundou toda uma ética na base da dualidade entre corpo e alma, matéria e espírito, imanência e transcendência, anulando qualquer valor aos termos iniciais dos pares de opostos, tornando unilateral o desenvolvimento do espírito humano e, como adverte Jung, em certo sentido reprimiu seu lado sombrio, projetando-o em forças metafísicas, representantes do Mal.
 
E a queixa dos filhos de Raquel encontra eco em suas lamentações: “Quem nos jogou nas trevas” “Quem éramos nós?” “Onde estávamos?” “De onde fomos expulsos?” “Aonde nos precipitamos?” “De que temos de nos livrar para o retorno à nossa morada?” Estas são as eternas questões que todos os gnósticos se colocam, em qualquer época histórica, em qualquer latitude do Planeta.

E a resposta/explicação também é sempre a mesma: a verdadeira vida não é deste mundo, pertence aos mundos siderais - ao Paraíso, ao Cosmos, ao Nirvana, ao WU-CHI (não-sopro, vazio) etc. O mundo em que vivemos não passa de uma prisão para o espírito que vive o sentimento de ter sido expulso, de que está alienado, mas que experiencia a dialética dolorosa de querer fugir ao mundo e, ao mesmo tempo, dele tem medo de liberar-se.

https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhB4YFWrO1KoZjDAYbNNUIPeehLmomX1ctfGvNzL3nj-VN4Cyv9KfPpApNwPS7NCZqGWyu1dJf0oRxAwZGf2p0YwfkUK2TsEPW7mXnpTAb7vTR9vDDMuhHzXWG43FQNUmb_kpMqTYc9Kho/s1600/Jesus+Cristo.jpgEssa angústia ou leva o Homem ao desespero niilista, daquele que perdeu o contato com suas fontes superiores, ou força o caminho na busca do mito pessoal, daquele significado que torna toda vida digna de ser vivida e todo homem merecedor do respeito devido a seu ser consciente.

Inerente à essa última postura, coloca-se o mito da SALVAÇÃO, quer pelo Divino Mediador - Jesus, o Cristo - quer pela fé no encontro direto entre o Deus Transcendente e o Deus Imanente, a centelha de que todo homem é portador, e que estabelece o trânsito entre a dimensão temporal de nossa consciência corpórea e a eternidade, a dimensão própria do espírito.

As etapas da SALVAÇÃO passam por dois tipos de atitudes opostas: aquelas que se refugiam em práticas mágicas, revelando a crença egóica da possibilidade da interferência do Homem no Drama Cósmico; e aquelas que se referem ao êxtase místico, onde o abandono total do ego (o ascetismo), permite que o Self se manifeste, ativando a imago Dei, presente no recôndito da alma humana. Trata-se, portanto, de construir uma nova imagem do Homem... 

Da mesma forma, do liberalismo ao indiferentismo ou ao ascetismo, a questão é sempre a de matar o homem velho, o mundo velho, de abandonar as velhas crenças e estruturas para se fazer nascer o homem novo, o mundo novo, perfazendo o caminho da agnóia (ou ignorância) à gnose (ou conhecimento). Este é o caminho da verdadeira SALVAÇÃO. Há, no entanto, pontos de vista divergentes, que não admitem a possibilidade da salvação, como os de Mani, concebendo uma luta cósmica infindável entre as forças da luz e das trevas, do bem e do mal, consagrando de vez um dualismo que até hoje se faz presente.

Como já dissemos, para o gnóstico não há pergunta proibida, não há tema tabu ou dogma, quando a civilização está em crise e o paradigma já não é mais um referencial. Nesses momentos surgirão vozes que falarão no deserto, mas que de qualquer forma indicarão o novo caminho e a boa nova. Assim foi com o ramo cristão do judaísmo, assim será na Nova Era que se avizinha, sedenta de novas sínteses, que derrubem os muros da incompreensão e coloquem as pontes da fraternidade, do amor e da paz. Até porque o século XXI será espiritual ou não será...

Urge um novo nível de consciência, a partir desse processo de conscientização individual e coletivo, que represente uma nova vinda de Prometeu com o fogo revivido do céu. Assim, a melhor postura de análise é a gnóstica, pois ela não se fecha em nenhum conhecimento, ou tradição; pelo contrário, busca sempre a revelação nas oitavas superiores, pois não se deixa levar pelas aparências do momento, nem pelas limitações pessoais. Lá onde o UM impera, o ensinamento flui sem reservas para todo aquele que ousar ouvir o coração do Eterno.


II - A GNOSE COMO ATITUDE ANTE A VIDA

Gnose, em grego, significa conhecimento e seu estudo como epistemologia ou teoria do conhecimento integra o campo da filosofia na atualidade. No presente texto, aludimos a uma concepção específica da gnose, cujas características passamos a enunciar.

https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhbEXHyvWg9XnXkwaom14_Yv_662qeCX2yS5MrjF-uCOiIQA-3ip5vcBL58Vury4GOlSHgiqldd5EHcL8erbUbg-x7orW7aE-DNS1d3u028RtZRHMwMgz3ftaEL0zXJOPWIEYzOKdGOq1Y/s400/creation.jpgO conhecimento ou a gnose surge como atitude ante a vida todas as vezes em que se carecem de novas estruturas intelectuais para compreender certas realidades. Quando novas questões são colocadas e novas respostas se tornam urgentes, homens e mulheres tentam a ultrapassagem do já constituído para instituir o novo mais abrangente, mais condizente.

Tanto movimentos espirituais, como reações de massa, podem significar que se está clamando por uma nova subida do nível de consciência coletiva, o que poderá ser constelado em um homem ou em grupo que afine seus ideais de vida, seus sonhos comuns.

E por que a atitude gnóstica tem este sabor de heresia (etimologicamente = aquele que pode escolher) e a de Alexandria foi assim efetivamente considerada? A resposta é simples, porque homens e mulheres, que ousam pensar e fazer de sua consciência o tribunal em que - como lembra Jung - se é ao mesmo tempo réu e juiz, tornam-se ameaça à ordem e ao poder constituído.

Do ponto de vista individual, quando se perde o sentido da vida, quando ruem os valores da moral convencional, quando as instituições já não mais atendem a seus objetivos, estabelece-se a busca. O mito da busca é a decorrência necessária do desconforto que sente o gnóstico diante da perda do paraíso pela queda ou exílio. E essa busca não tem apenas o sentido transcendente do misticismo religioso, ela também se manifesta no plano da matéria, como procura de um significado e de um entendimento para o Mal e para a Injustiça.

Mas não se trata apenas de novos referenciais teóricos: a gnose é sobretudo uma vivência, uma prática. O que caracteriza a vivência gnóstica é a percepção do mundo como algo estranho, sendo o homem um errante, à procura do retorno à sua verdadeira morada. Este é o sentido profundo da palavra ética em sua origem grega: hthos, isto é, a morada do homem. A gnose como atitude ante a vida deve ser utilizada não só em situações pessoais, mas em quaisquer eventos à nossa volta.

Sem dúvida uma questão instigante é saber se, em vez de ter prevalecido os cânones da Igreja Romana, o gnosticismo tivesse sobrevivido. De que forma isto teria afetado a cristandade e o Ocidente em geral?...

III - DA GNOSE AO GNOSTICISMO:

http://t1.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcSuktWkimY26WYR60W3Ok1aCBOiFX_pLGI2xC58SaH3yCSSkZ4&t=1&usg=__1q3x2AEhDn4a7X-YAhi_2EEr3Ss=A gnose pode manifestar-se de modos diferentes, segundo a época em que emerge e as circunstâncias que lhe dão origem e significância. Assim, pode-se falar em gnoses pré-cristãs e pós-cristãs; em gnoses ascendentes e descendentes, intelectualistas ou pseudo-gnoses. Pensadores como Goethe, Marx, Nietzsche, Heidegger estruturaram sistemas gnósticos, tanto quanto Blavatski e Rudolf Steiner. Como sistema filosófico ou político, o gnosticimo aparece todas as vezes em que as circunstâncias retratam o esgotamento de uma dada situação.

Na história, os essênios entre os judeus, movimentos neo-pagãos, em Alexandria, novos mitos e até religiões políticas, a partir principalmente do Renascimento, surgiram, quer como parte do fenômeno das heresias, quer como novas interpretações da história do espírito humano.

Hoeller mostra que os essênios representavam, de fato, um judaísmo pré-cristão de caráter gnóstico, organizados em comunidades espalhadas, a partir da sede em Qumram, abarcando o Egito - Alexandria, portanto - toda a Judéia, atingindo Roma e a Ásia Menor. Tal organização era a matriz perfeita para abrigar o novo credo que se formava, sob a liderança de Jesus, provavelmente, o Mestre da Retidão, de que os essênios falavam (1990:47). Para maiores detalhes consultar OS MANUSCRITOS DO MAR MORTO, de Laperrousaz, s/d.

A gnose, como gnosticismo cristão, ocorreu entre o séculos II a V d.C. Como maniqueismo, ela se revela em todas as visões de mundo que promovem o embate entre as forças da luz e a das trevas, entre o Bem e o Mal, em seu sentido metafísico e absoluto. Como alquimia, na Idade Média européia, debruçou-se sobre uma tarefa que era verdadeira reviravolta de 180o graus, em relação à visão cristã oficial: não era mais Deus a salvar o homem de seus pecados, mas o homem a resgatar Deus do abraço mortal com a matéria, através da Magna Opus. Como kaballah, a gnose era um conhecimento reservado a poucos iniciados nos mistérios da língua hebraica e de seus símbolos revelados metaforicamente no Antigo Testamento. Constitui seu aspecto místico.

É bem verdade que houve diversas manifestações de gnose, tornando difícil falar desse movimento como uma unidade. Podemos perceber uma gnose mágica associada ao nome de Simão, o Mago, que se fazia acompanhar de uma prostituta que acreditava ser a encarnação da divina Helena, de Tróia (citado nos ATOS DOS APÓSTOLOS, no NOVO TESTAMENTO); ao lado da gnose mística e de práticas pneumáticas ou mediúnicas (hoje campo de estudos da parapsicologia).

http://maniadehistoria.files.wordpress.com/2009/04/cataros.jpg?w=436&h=442
Cátaros: Extermínio dos puros
Várias seitas iniciáticas se constituem em outras tantas gnoses, a saber: o templarismo, o catarismo, a maçonaria, o rosacrucianismo, a teosofia, a antroposofia etc. Todas entendem a gnose como auto-iluminação.

No presente texto, nosso interesse central é o sistema filosófico que se expandiu em Alexandria - a cidade, segundo Jung, em que o Oriente e o Ocidente se encontram - conhecido como a gnose de Alexandria, movimento carismático dos primeiros tempos do cristianismo. Nela coexistiam alguns tipos de gnose: a gnose mágica ou mística, a filosófica; a ofita ou naassena; a ascética ou liberal. A gnose ofita ou naassena, com seus adoradores da serpente (vide a serpente como símbolo do Cristo, citado em JUNG, C.G. SÍMBOLOS DA TRANSFORMAÇÃO, 1989), considera-a o divino canal pelo qual a consciência manifestou-se ao Homem; ao lado de vertentes ascéticas e de moral rígida, celibatárias, com alimentação especial etc. (como a de Marcião) e liberais, em que os excessos eram permitidos, no pressuposto de que o que quer que acontecesse ao corpo não poderia, de forma alguma, afetar a alma.


IV - A GNOSE DE ALEXANDRIA:

Os principais representantes da gnose de Alexandria (séc. II a V d.C.) são Valentino, Basilides, Carpócrates e Marcião.. “Quem nos jogou nas trevas?” A grande questão, pois, colocada à indagação e ao coração do homem é a da origem da dor e do sofrimento do mundo.

A resposta era dada mediante inspirações literárias e míticas, das quais destacamos quatro mitos:

1) o mito do paraíso perdido (o inconsciente urobórico);

2) o mito da queda ou da exclusão (a queda angélica e a queda adâmica = paralelo ao conceito grego da hybris X metron = não o mal no sentido ético do termo. O abandono pela família, como início do processo de individuação);

3) o mito da busca (sensação de alienação e de ter sido expulso, o herói ou a alma enfrentando as dificuldades e a aventura da vida);

https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg8dESYcNX-J0LmMds3OkwXYcCl6W49CB6n70JIgBSmVrkmGj2HmGDpZVXADlei7rYDUVb-TNIULUIp2X012bQAYVRhxuHQOS5l9DGY4pTnpjkdI06pFSPfXFkASmlE7xh6_ucCW2oH-Ho/s1600/Wheel%2520of%2520Samsara.jpg4) o mito do eterno retorno (o estranhamento e fuga deste mundo - introspecção necessária à individuação), a sensação de ser errante ou estar de passagem; a sensação do déja-vu (teoria da reminiscência de Platão: toda lembrança é uma recordação); a necessidade de retorno à origem e à verdadeira vida dos espaços siderais - Cosmos, Paraíso, Nirvana (o medo da volta).

Desse ponto de vista mítico, as almas mais puras guardam a lembrança de sua origem divina e a ela querem retornar. Marcião funda uma seita religiosa, com base em práticas ascéticas e moral rígida, pelo pressuposto de que o corpo devia tornar-se sagrado, por ser o templo do Espírito nele aprisionado.

A atitude gnóstica não reconhece um mundo que é uma prisão. O gnosticismo busca o reconhecimento do que éramos, do que fomos, de onde estávamos, de onde fomos expulsos, aonde nos precipitamos e do que temos de nos livrar e renascer pelo impulso salvador do espírito (pneuma): “Não se põe vinho novo em odre velho”...Mito de morte e renascimento... 

Que ensinavam estes mestres? Que havia um Deus supremo, increado, que era o máximo de Unidade. Que Deus não havia criado o mundo, mas este havia sido emanado de sua Sophia, segundo um mito gnóstico, através de desdobramentos (emanações) numa série complexa de entidades intermediárias - espíritos inferiores - que terminariam, estes sim, por criar o mundo.

Assim, o desprezo dos gnósticos era pelo kosmos do Demiurgo e não pela Natureza, onde Deus habita. Cultivavam, pois, a idéia de um deus imanente (o Anthropos), idéia que foi incorporada pelos alquimistas como a lumen naturae (a luz da Natureza). Na psicologia analítica, representa os instintos e o inconsciente. Cumpria salvar o homem do mundo, que nem era um cosmos, nem criação de Deus, diferençando-se os gnósticos, tanto dos gregos como do judaísmo-cristão sobre a questão da origem do mundo.
 
Teoria da emanação antes que da criação, nela já há um primeiro confronto com o que viria a ser a ortodoxia apostólica e seus pressupostos de crença: DEUS, a CRIAÇÃO e a REVELAÇÃO, através de alguns intermediários autorizados, os primeiros dos quais naturalmente os apóstolos, entre eles os que viriam a compor os evangelhos canônicos.

http://sp6.fotolog.com/photo/22/24/33/sleeper_27/1214483932041_f.jpgPara Carpócrates as almas humanas seriam anteriores à produção do mundo, tendo vivido, portanto no seio da divindade e experimentado a máxima Unidade (influência da teoria platônica das formas puras). Basilides supõe que as entidades divinas, vivendo no Estereoma celeste, teriam engendrado o primeiro ARCONTE e suas principais entidades (os éons). As principais emanações do Absoluto seriam: Sofia ou o lado feminino e criador de Deus: a sabedoria divina (sophos = Sábio), seu amor e misericórdia como a redentora do homem; o Nous, a inteligência e a sabedoria divina que rege todos os processos do universo; o Logos, isto é, o dizer, o Verbo que, ao nomear, impregna o ente de significação; a Energueia, a energia criadora; a Dynamis, como a força, o movimento universal, a Aletheia, a verdade, a descoberta (fonte do Logos, como princípio constitutivo da coesão e da Vida) e a Phronesis, discernimento e inteligência prática responsável pelo mundo da manifestação. Elas seriam os arcontes ou regentes do mundo, seus primeiros éons.
 
Com a criação do mundo pelo Demiurgo (YALDABAOTH ou JAVÉ), diz a gnose mítica que Sofia, desejosa de conhecer todos os meandros do Pai, cai nos mundos inferiores da matéria, apaixona-se e é por ela abraçada, não podendo mais afastar-se do convívio dos homens, também eles decaídos.

Por esse mito - das centelhas de luz (espírito) presas na matéria - se configuraria a possibilidade do Absoluto de, ao contemplar o Abismo, ter se entristecido com o “Não-Ser”, tendo suas lágrimas derramadas se transformado em centelhas de luz que se aprisionaram à realidade física. A alma e o espírito do homem... E o Eterno Deus Altíssimo sonhou ainda por muito tempo. No sonho ele viu o mundo que criou potencialmente, se expressar ciclo cósmico após ciclo cósmico (éons). Quando acordou do sonho, o Altíssimo deu um grande sorriso e, voando como um pássaro, lançou-se no abismo da noite, repartindo-se em milhares de pedaços que cintilavam com tal esplendor espiritual, com tal intensidade, que ...Fez-se a luz!

https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhDU_uwcY-WZQjOEqfopoZro0xw8O-4NfSPDpe824DRJX95MHp6emsmw1C_V2sPJYQM6KsGHZ5GJLfE8zIp0lgUtgor8uA9wn8h-jcR_-ldFLVtANWzuzpPpvUlXehSTdAGD96Ei6Ot_Js_/s1600/Eros+e+psique.jpgAssim é que cada um de nós é uma partícula desta luz. A gnose mística sustenta ainda que é destino da humanidade descobrir sua unidade divina e reunir-se novamente, retornando ao lugar da queda, ao local onde feminino e masculino eram um só no Absoluto. A lenda ainda conta que para empreender feito de tal envergadura, o ser humano deverá encontrar embaixo, no elemento adâmico, a unidade perdida, para só então retornar ao Paraíso, coagulando-se com as milhares de miríades de si mesmo.

Sofia representará assim o arquétipo do amor divino pelos homens, a misericórdia de Deus pela criação, e seu retorno ao mundo divino expressa a exigência da redenção da humanidade. Enquanto aprisionada na matéria perdida entre os homens é a Sophia Achamot, aguardando sua redenção para voltar a ser a companheira de Deus, primícia de suas obras: a divina Sophia Shekiná.

Uma variante do mito diz que Deus, para criar o mundo, debruçou-se em uma janela e ficou longo tempo a sonhar. Era noite, o mais denso caos, e a sucessão de imagens passava pelos Pensamentos de Deus. Lá fora o negrume do abismo sem fim contrastava sobremaneira com os Pensamentos do Eterno. No seu sonho, Deus criava Adão, o homem universal à sua imagem refletida. Sonhou também que fez cair Adão em um profundo sono magnético, de modo que Adão adormeceu e o Ser Altíssimo tomou uma das imagens mentais com que este sonhava e revestiu de beleza e forma corporal a sua base. Depois consolidou a essência desse produto da imaginação que tinha extraído de Adão, fazendo dela sua esposa intelectual e lha trouxe. E o Eterno Deus Altíssimo sonhou ainda por muito tempo. No sonho ele viu o mundo que criou potencialmente, se expressar e manifestar. O final da lenda é misteriosa, pois termina com o Homem-Deus frente ao Superior Incógnito, um duplo seu: sua imagem e semelhança.

Compare-se com a teoria bíblica das quedas (angelical, de Samael, e humana, de Adão) opondo o problema do livre-arbítrio ao do destino, sem conseguir alcançar a noção de complementaridade entre os princípios, o que seria feito, do outro lado do mundo: na China taoista, com seus pares “yang/yin” e com uma ética que visava aproximar o jen tao (o tao do homem) ao ch’ien tao ( tao do Céu), tendo como modelo as leis naturais e cósmicas...

Assim, ao lado do Deus transcendente (ainda que escondido: Júpiter, Javé, Espírito Absoluto, Dialética Materialista), admitiam os gnósticos a imanência de Deus no coração do Homem, ou seja uma nova imagem do Homem, aceitando também que o Homem poderia vir a redimir o espírito, tanto quanto o Homem-Deus viera para redimir o Homem carnal. Nesse sentido - alquímico, por excelência - os gnósticos e depois os alquimistas farão a ponte entre o paganismo e o cristianismo, tanto quanto os essênios serão o elo entre o judaísmo e o cristianismo. Até chegar a Jung e sua contundente crítica ao cristianismo, em especial a relativa à transcendência de Deus, colocada como dogma de fé, e afastando a imagem divina da interioridade humana que, sem ela ressecou no materialismo vigente em nossa época (ver Dourley, J.P. - A DOENÇA QUE SOMOS NÓS, 1987).

https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh1gE1uzMFAdrforq4UlnkurXT1fSJ44QX9foFHqg1gmuXiTsdHSMvyjbt8RuoJU8QKzOXR60zJowe3DgnhFeskvEubrv4P3sj6jO4OVRvq4PsU2h6vX29ewSNrQPvi5XLZE1Ino7HaB0Mw/s1600/lucifer.jpg
A ação mítica de Lúcifer ou de Prometeu representa a possibilidade de subida do nível de consciência, graças ao impulso para a salvação que vem do espírito (pneuma) e, sobretudo, ao aspecto divino do feminino em seu afã de conhecer-se: Sofia, Lilith, Eva ou Pandora, por exemplo.

Podemos caracterizar, pois, a gnose de Alexandria como uma proposta de:

 1) hierarquia entre os indivíduos (o homem hylético, o psíquico, o pneumático) versus ahierarquia eclesiástica, que separava o clero dos fiéis. Como se percebe, tal hierarquia se estabelece, consoante o desenvolvimento espiritual de cada um: os hyléticos, que vivem ao nível da matéria: os psíquicos, que se deixam levar por suas paixões, só se alçam ao anímico eos pneumáticos que alcançam o mundo espiritual propriamente dito. Em cada grau, no entanto,havia perfeita igualdade, sem distinção entre os sexos ou entre fiéis e sacerdotes. Não havia, pois, uma hierarquia eclesiástica no sentido restrito do termo.

2) ausência do intérprete autorizado.

3) uma metafísica das relações entre o Criador e a criatura através de quatro movimentos: a
emanação, a criação, a formação e a manifestação.

4) configurar o criador do mundo na figura do demiurgo (responsável pelo mal e pelo
sofrimento). Ficam, assim, recusadas as idéias do judaísmo e do maniqueismo sobre o livre-
arbítrio ou o destino como origem do mal .

5) partir da idéia de um Deus imanente em complementação à de um Deus transcendente. 

6) uma missão do homem redimindo o espírito (Deus), contrária à tradição de um Homem-Deus
redimindo o homem carnal. Nesse sentido a Alquimia se revela como continuação do
gnosticismo. 

7) opor a idéia messiânica de uma salvação coletiva ao esforço libertador do autoconhecimento individual e solitário (A verdade vos libertará...Conhece-te a ti mesmo e conhecerás a Deus...).

Obs. O mal para os gnósticos não é apenas uma categoria moral, a hybris grega oposta ao métron, nem deve ser atribuído às quedas luciferina ou adâmica, em função do livre-arbítrio. “À pergunta: por que o homem deseja o mal?” respondem com a idéia de destino, como isca, colocado pelas moiras, entidades que urdiam o destino das coisas, na mitologia grega.


V - INFLUÊNCIAS GNÓSTICAS NO PENSAMENTO DE JUNG:

Jung encontrou nos gnósticos verdadeiros amigos, que lhe permitiram refazer elos históricos. Vislumbrou ele uma linha de continuidade entre suas descobertas relativas ao inconsciente, principalmente ao inconsciente coletivo - que nos identifica enquanto espécie - e as intuições dos mestres de Alexandria que, a seu modo, mítico ou especulativo, também eles iam ao encontro do inconsciente, ou de sua projeções.

Por uns foi acusado de ser gnóstico (a pior das heresias para os cristãos ortodoxos); por outros, de agnóstico (pela recusa de assumir pressupostos metafísicos). Para Stephan Hoeller, Jung foi um gnóstico. Não só por sua atitude ante a vida, trazendo novos conceitos e dimensões para explicar o humano, como pelo fato de que buscou o gnosticismo de Alexandria, nos séc. II a IV, de nossa era, como fundamento para muitas de suas idéias. Para Jung. o processo de individuação permite o autoconhecimento e a autotranscendência. Contudo, Jung é considerado, entre outras razões, como agnóstico, por recusar a fé como fundante da experiência de Deus. E isto fica muito claro, em sua entrevista à BBC de Londres, quando indagado se acreditava em Deus, ele responde: “Eu não creio em: eu sei!”.

A obra indiscutivelmente gnóstica de Jung é um pequeno texto, escrito sob a forma de poema-metafórico, intitulado OS SETE SERMÕES AOS MORTOS que ele assina sob o pseudônimo de Basilides, homenagem ao grande filósofo de Alexandria. Esse texto surgiu em circunstâncias estranhas, em uma atmosfera pesada, sentida até por seus filhos, ainda pequenos: campainhas tocando, sem que ninguém estivesse batendo; sonhos perturbadores etc., até que Jung resolveu pegar da pena e começou a escrever...E escreveu sobre a vida e a morte, tal como sentida por um gnóstico...

No 1o Sermão, Jung faz uma espécie de cosmogonia, indicando a natureza do elemento primordial, o PLEROMA, segundo a terminologia gnóstica, isto é: o Nada ou Vazio primordial, que paradoxalmente, contém potencialmente Tudo ou a Plenitude. Trata-se de uma dialética de ambigüidade. O conceito de inconsciente coletivo pode ser entendido como o PLEROMA dos gnósticos, em nível psicológico individual. É infinito e incognoscível, é eterno, transcendental, incriado e intemporal. Nele os conteúdos são indiferenciados, e, portanto, incognoscíveis, no entanto, ele é, ao mesmo tempo, a fonte e matriz da consciência e de todos os seus conteúdos.

Para Jung, o mundo criado se constitui de emanações e é penetrado pelo Pleroma, assim como um corpo é penetrado de luz. Daí, poder-se falar do Pleroma em nós, como um ponto pequeno e hipotético, no firmamento ilimitado do cosmos. Tudo que é definido e sólido é sujeito à mudança. A criação dos seres é fruto da diferenciação que exige o Principium Individuationis.

Nesse Sermão, Jung fala, pois, do princípio de individuação, um dos pilares de sua teoria, e que se constitui na diferenciação a ser feita entre os pares de opostos que emanam do Nada primordial. Tal diferenciação não é, para Jung, apenas uma questão intelectual, mas a necessidade de que cada ser atinja a verdade de sua própria natureza. Para ele, há, assim, uma dialética de implicação mútua entre o Criador e os seres criados, cabendo ao homem realizar a soma de suas potencialidades latentes, integradas no Si-mesmo, sua totalidade transconsciente.

A indiferenciação é como a morte, já que os opostos se anulam no Pleroma e, assim, Jung, diferentemente, de certas posições orientais dá grande valor ao trabalho consciente do ego, capaz de diferenciar os opostos. Na verdade, o estado anterior de igualdade é, para Jung, a anulação do indivíduo enquanto tal.

Esses representam emanações do Pleroma e se apresentam como syzygias (pares complementares de opostos), significando as qualidades do Pleroma em nós, pois o Pleroma em si é vazio e não tem qualidades. Dessa forma, Jung se apresenta não como um dualista, pois cada um deve transcender o fascínio de cada pólo e guardar a distância de cada um (função transcendente). Jung apoia-se aqui na idéia do conflito de opostos de Heráclito.

Diz ele: “Não a vossa mente, mas o vosso ser constitui a diferenciação”. Daí Jung recomendar que cada um de nós deve lutar por realizar sua verdadeira natureza, mantendo o raciocínio sob controle, através da gnose, sem anular as forças da vida. Trata-se de seguir o caminho fáustico, existencial, de viver a vida em sua plenitude.

A salvação do homem constitui, pois, em sua libertação dos pares de opostos, das syzygias que, em termos junguianos, se constituem dos aspectos positivos e negativos dos arquétipos. Como, para Jung, o inconsciente é a matriz da consciência, nós não temos os pensamentos, mas eles fluem para nós a partir do Pleroma (função psicológica da intuição) e abrem nossa consciência para a plenitude do Ser.
Assim, a verdadeira natureza do homem implica a relação dialética entre a consciência e a inconsciência, entre a moral e o instinto, sendo que nós no Ocidente privilegiamos a consciência, enquanto o Oriente desenvolveu mais seu relacionamento com o inconsciente. 

Daí que o desejo de autoconhecimento, da mesma natureza que o desejo por alimento ou por sexo, é o movimento pela transformação, superando as unilateralidades da consciência pela compensação exercida pelo inconsciente. Se vida e liberdade se reconquistam a cada dia, podemos dizer que Jung é um precursor da psicologia existencial.

Na verdade, para ele, as teorias são apenas abstrações que nos afastam do mundo concreto e das conexões com nossa criatividade transformadora. Diz ele: É preciso mudar não os conceitos, mas a si mesmo, pondo o pensamento sob o controle do Self. 

No 2o Sermão, Jung faz uma espécie de teogonia. Ele fala de Deus, que denomina de Helios (sol) e do demônio. Deus já pertence ao mundo criado, pois se diferencia do Pleroma (é uma qualidade deste), mas é menos definido e diferenciado que a própria criação. Deus é a plenitude efetiva, manifestada do Pleroma; é a criação como atividade. Ele é a potencialidade do bem e do mal. É como a luz das estrelas que nos guiam, enquanto o demônio é o espaço vazio manifestado, que circunda cada uma. Ele é também o vazio efetivo do ser e o mal, como um princípio que atua em nós. O que Deus constrói, o demônio destrói, numa trama eterna de criação e destruição.

Na psicologia junguiana, esses dois princípios estariam representados pelos arquétipos, as formas estruturantes de nossa psique e eles só existem se os discernirmos do Pleroma que eles também são.
Esse dualismo DEUS-DEMÔNIO (influências zoroastrinas e maniqueistas) só existe no mundo das emanações, como as primeiras manifestações do NADA ou do Pleroma resistindo um ao outro, como opostos ativos, pela atividade de ABRAXAS, o deus incognoscível da atividade real do todo, ou da não-realidade ativa do ser criado. No Pleroma, eles se anulam porque se unificam.

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Fausto (Goethe)
Para Jung, a atividade está acima de Deus e do Demônio, pois ABRAXAS, a atividade manifesta do Pleroma, preexiste a ambos e cria os seres diferenciados do Pleroma. Aqui é patente a influência de Goethe em Jung, quando no capítulo V, do Fausto, o poeta alemão diz: No princípio era a ação...

Assim, bem e mal não seriam encarados como realidades éticas ou morais (ele critica, pois, o cristianismo por ter reduzido o problema à sua única dimensão moral), mas como forças metafísicas (por sua magnitude titânica), o que explica o célebre antinomianismo (desprezo pelas leis dos homens) por parte dos gnósticos. Enfim, o que está em jogo é o princípio do poder, a persistência e a mutação em todos os seres, pois, para ele, a vida é uma tensão de opostos e o mal é o oposto necessário para que se reconheça o bem (yin/yang como complementares metafísicos). Como um é relativo ao outro, sua origem está no próprio homem. Em suma, o conflito é uma realidade psicológica necessária (Heráclito) ao processo de individuação. O arquétipo correspondente é o dos irmãos inimigos: Caim e Abel, Esaú e Jacó, Osiris e Seth etc.

Jung advoga a importância do reconhecimento de Deus na alma, como imago Dei, ou o Self. Desse modo, para ele, os arquétipos são o aspecto divinal da multiplicidade de deuses, são como que emanações divinas, como dito no item IV, sobre a gnose de Alexandria.
No 3o Sermão, Jung fala de ABRAXAS, uma espécie de atividade cósmica, igualmente doadora da vida e da morte. Nesse Sermão Jung atinge beleza literária, com suas metáforas, semelhantes às de Goethe, o supremo poeta da língua alemã.

http://etc.usf.edu/clipart/14200/14282/abraxas_14282_lg.gifABRAXAS é a vida indefinível (seu nome tem 7 letras ou os sete regentes do mundo ou os raios criativos das esferas planetárias e significa “abir” = touro + “áxis” = pólo, eixo); é a energia psíquica, a atividade do todo, a mãe do bem e do mal, na dialética de ambigüidade em que o indivíduo se vê envolvido em sua ascese às esferas celestiais. É o élan vital, o arauto celestial, o poder supremo que une luz e treva, a energia vibrante e a suprema atividade responsável pelas primeiras manifestações do Pleroma.
http://t2.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcQDfrBN89AorU6Tx_usKpp_-f5kbu5pZp0F5GWjcr5Ih1At-v0&t=1&usg=__IK4kwQQONFxgu9g0MiHCs9uylHI=Nesse sermão, Jung refere-se ao ano cósmico do touro e sua etimologia que, em grego e em hebraico, compõe o número 365 (para os gnósticos eram os diversos céus governados por ABRAXAS), o número de obstáculos psicológicos a serem vencidos, na totalidade do tempo, para a libertação. Trata-se, na verdade, de um eterno-agora (criador/destruidor ou Vishnu X Shiva), ligado à figura de Osiris, do Cristo ressuscitado para os gnósticos, enfim de todos os heróis que triunfaram sobre os regentes guardiães do ego humano (arquétipos ou os planetas, na astrologia, que definem o caráter daqueles que subjugam - Marte, a ira; Vênus, o erotismo, Mercúrio, a ambição, etc.) e sobre o tempo linear ou cíclico a que estavam sujeitos. 

Esses regentes representam os poderes obstrutivos que caíram e se tornaram ignorantes e maléficos em camadas cada vez mais inferiores. Eles se opõem à busca e ao retorno às esferas e éons celestiais, a verdadeira fonte para o cumprimento das tarefas, obrigações, purificações e transformações. 

Invocado por talismãs e amuletos, ABRAXAS afastava a influência limitadora dos Regentes do Mundo, auxiliando na ascensão a estados transcendentes. Ele é o primeiro dos mistérios. Dos homens, apenas os pneumáticos (espiritualizados) podiam destruir o tempo, libertando-se do ciclo das necessidades (o sansara budista: a roda dos nascimentos).

A salvação pela redenção de Jesus é um evento irreproduzível: mas a salvação pela ascese entre os éons é um evento reproduzível, pelo processo de crescimento espiritual. Do ponto de vista psicológico, ABRAXAS representa a união dos opostos, a dualidade complementar entre consciência e inconsciente. É a árvore e suas raízes escuras. É isto e aquilo; e não isto ou aquilo.

Assim, a luta pela individuação é a conquista das diferentes regiões do inconsciente por parte da consciência, pela renovação através do Self. O requisito é a libido ou a energia psíquica, a força espiritual titânica, impessoal e amoral, indiferenciada que perpetua a vida da psiqué, incluindo os opostos e não se ligando unilateralmente a um deles. O que importa é a plenitude do ser. Para isso, não basta o conhecimento intelectual, é preciso a sabedoria intuitiva. Trata-se de unir o demiurgo à Sophia.
A atitude da consciência em face de ABRAXAS não é a da simples contemplação ou veneração; mas a do temor, da reverência e da prudência. Não se deve resistir a ABRAXAS, porque ele representa o poder da Natureza, a aceitação do inconsciente, a permeabilidade entre a repressão e a servidão, pois na verdade nada acrescentamos nem subtraímos. Em suma, o 3o Sermão nos coloca diante da tarefa de projetarmos nossa alma para fora e para dentro, introjetando o arquétipo de Deus dentro de nós.

http://t1.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcQh6U7xZH08hKnzQ3uqSCQcaXE5KG2cJZd7b9fDxkUpHAVU1xo&t=1&usg=__OyjD26ZP39JbnEpP5RAsq66kzxQ=No 4o Sermão, Jung nos remete às relações entre dois princípios divinos que unem o bem e o mal: Deus-Sol, como bem supremo; o demônio, como o mal supremo. Eles se apresentam como Eros flamejante (a chama que brilha e devora e se apaga: a própria vida em toda a sua violência) e como a Árvore da Vida. O primeiro gerador e doador de vida; o segundo acumula a matéria viva enquanto cresce, estabilizando e construindo a cultura e a civilização. O Homem, em sua escalada espiritual, precisa de ambos os princípios. Eles são arquétipos que opõem a consciência aos instintos. Vida e amor opõem-se mutuamente em sua divindade. 

Jung considera um politeísmo (e um polidemonismo) ao referir-se à quaternidade (quatro é o número das dimensões do mundo) dos deuses: o UM = o Deus-Sol, como princípio; o DOIS = Eros que se expande; o TRÊS = a Árvore da vida que dá forma aos seres, preenchendo o espaço com os corpos; e o QUARTO = o demônio, que abre o que está fechado, tudo dissolve e tudo destrói, conduzindo de volta ao nada. Deus é a estrela; o demônio é o espaço vazio por ela ocupado. O Pleroma é o vazio do todo e a unidade de tudo. ABRAXAS é a atividade do todo: o oposto de ABRAXAS é o irreal.

Ele também fala de uma multiplicidade de deuses que podem converter-se em UNIDADE, como símbolos e arquétipos; sendo que como deuses se encontram em solidão e separados, enquanto cabe ao Homem o movimento de libertar sua existência pela individuação, à base de uma nova ética.

Assim, Jung coloca-se como monoteísta, pois ele acha lastimável que se substitua a unidade de Deus - como união dos opostos - por uma diversidade que significaria a luta entre esses opostos. Indaga ele: “Como podeis ser leais à vossa natureza quando tentais fazer um dos muitos?”. Diz Jung: “O homem é um partícipe da essência dos deuses, ele vem dos deuses e vai para Deus” (o eterno retorno) . Mas acrescenta: há deuses da luz (celestiais que se expandem ao infinito) e deuses das trevas (que diminuem e encolhem infinitamente). E, assim, tem-se um mundo celestial, múltiplo, em expansão (HÉLIO) e um inferno que se contrai, é o espírito da Lua e o servo da Terra. O menor, o mais frio e inerte que a própria terra. Mas esses diferentes deuses são apenas a expansão e a contração ao infinito da mesma energia.

Nesse Sermão, Jung usa símbolos como os da sarça ardente e da árvore da vida e procura realçar que os pólos em luta na vida de cada um de nós são, de um lado, o corpo; do outro, o espírito; o sentimento versus o intelecto; o feminino versus o masculino; o instinto versus a civilização; Dioniso versus Apolo; ou o flamejante versus o florescente; a revolução versus a conservação; a guerra versus a paz; a destruição versus a construção.

Diante desses opostos, cabe ao homem a tarefa heróica, mística e ética, de centralizar-se em face de cada pólo, verticalizando-se ao imprimir à sua vida um sentido, uma significação através do Self ou da divindade interior: ao mesmo tempo deve horizontalizar-se, ao se colocar em relação com o Outro, buscando conhecê-lo na vida social, assumindo suas responsabilidades em face da nação (como entre os judeus) ou no domínio de uma fé comum (como entre os cristãos). Sendo o caminho, o do autoconhecimento e o da individuação.

Não se trata de uma pura e simples volta à Natureza (Rousseau), pois esta pode não ser pacífica e até ser destruidora, colocando-se acima do bem e do mal humanos. Aconselha Jung a segurança, a continuidade, a permanência ao lado da criatividade, da espontaneidade, assegurando tanto as instituições sociais, quanto a criatividade artística individual.

Ele alerta contra a trivialidade do cotidiano, das repetições e dos hábitos, que refazem sempre um retorno cíclico às acomodações costumeiras. Jung mostra os pontos positivos do florescente: a autopreservação e a nutrição, a cultura e a civilização que retratam a realidade do coletivo, exigindo tolerância, refreamento do instinto; e seus pontos negativos, como a repressão, propondo, em seu lugar, uma disciplina interior ou uma autodisciplina.

No 5o Sermão, Jung fala do Homem e da comunidade, para os cristãos primitivos, a Igreja ou ekklesia (assembléia do eleitorado: homens que se reconhecem como de origem divina). Constituem a oposição entre a espiritualidade (Pleroma, deuses celestiais) e a sexualidade (deuses terrestres); entre o Logos, Apolo e Minerva, de um lado; e Eros, Dioniso, Afrodite, de outro. É um problema energético que exige uma concessão à carne, pois representam demônios super-humanos, mais próximos do homem que dos deuses.

Nesse sermão, Jung fala do mito da Grande-Mãe (mater coelestis) e do phallos (pai telúrico), a matéria (hylé). O princípio celestial é feminino; o terrestre é masculino: o primeiro recebe e compreende; o segundo gera e cria. A união desses opostos engendra o Anthropos, o Andrógino, o Espírito, Logos e Sophia.

No homem, diz Jung, a sexualidade é mais terrena e a espiritualidade, mais celestial, na direção do maior. Na mulher, a sexualidade é mais celestial e a espiritualidade, mais terrena, na direção do menor. O conflito entre anima e animus beneficia a ambos, embora homem e mulher devam separar seus caminhos espirituais, segundo a natureza da diferenciação, para não se tornarem demônios um para o outro. “Cada um deve dirigir-se ao próprio lugar.”

De fato, para Jung, o homem deve separar-se da espiritualidade e também da sexualidade - colocando a necessária distância entre esses dois demônios para não ser vitimado por eles. O homem deve conhecer o que é menor; e a mulher o que é maior. Mesmo que esteja sujeito às leis da sexualidade e da espiritualidade (que são seres superiores e externos a ele), deve buscar apoio na comunidade, porque é fraco e pode ser por eles vitimado.
Nós não possuímos esses dois demônios; eles é que nos possuem, e se não nos diferenciarmos, ficaremos sujeitos às suas leis. Eles são causas comuns e perigos graves aos quais não se pode escapar. Por isso, devemos unir-nos em comunidade, compensando nossas fraquezas, ou sob o signo da mãe ou do pai (phallos). Assim, evitaremos sofrimentos e enfermidades, embora a comunidade fragmente e dissolva, pois a diferenciação conduz à solidão..
Na verdade, ensina Jung, a comunidade existe por causa dos deuses que forçam a uma comunhão, e ele mostra que, enquanto a vida em comunidade nos faz crescer em abrangência, a solidão do indivíduo que procura a si mesmo faz crescer em altura e profundidade. O primeiro dá calor, o segundo dá luz. O tema é a tensão entre o individual e o coletivo, entre o masculino que se resolve em profundidade e o feminino que engendra o silêncio (yang/yin). Pois, afinal, é da tensão dos opostos que se gera a energia e seu excedente é necessário à construção da cultura e da civilização, da arte e da estética, da religião etc.

É marcante a influência de Heráclito no pensamento de Jung, do princípio de que é da luta dos opostos que nasce a luz. Do ponto de vista psicológico, acha Jung que não se deve ter apego a qualquer dos pólos, nisso consistindo o valor transformativo do conflito. 

Simbolicamente, Jung vê a comunidade feminina na cidade-mãe e a masculina na fortaleza-pai. Os opostos, psicologicamente, para Jung, se fundem, ou para produzir algo novo intrapsiquicamente (o andrógino alquímico); ou criam algo novo no campo de força entre eles, as duas pessoas interagindo com autonomia, mas na relação surgindo algo novo entre elas.

http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/8/8e/DaVinci_MonaLisa1b.jpgEva é a feminilidade psíquica da intuição; Adão é a alma vivente, moroso, animalesco que se conscientiza através de Eva. Esta constatação não deve ser confundida com uma dualidade, em função da consciência diferenciadora, que considere o espiritual como bom e o animal, como mal. Nesse ponto, Jung critica o cristianismo hegemônico que acabou com o valor do conflito, considerando toda concessão à carne como pecado contra o espírito, traduzindo-se em culpa e desesperança.

Em conseqüência, surgiu um espiritualismo unilateral ao qual se opôs o Renascimento e, por sua vez, um antropocentrismo unilateral: materialista, trivializando a vida. Ele comenta sobre alternativas orientais - o taoísmo, o tantrismo - opostos que se complementam em luta criativa às premissas unilaterais ocidentais. É claro que Jung critica também a unilateralidade da espiritualidade de algumas seitas orientais, considerando como missão do Ocidente reviver seus próprios mitos, como a alquimia de Toth ou de Hermes.

Esse Sermão levanta, enfim, todo o problema das relações entre os sexos, não escapando às questões do feminismo, com suas implicações culturais. Mas o que verdadeiramente importa é a união dos opostos relativos à construção do gênero (masculino/feminino) em cada um de nós. 

A realização da androginia compondo 4 fases:

1) a do ego, do sexo ou da nigredo;
2) a do sexo unido à emoção ou da albedo;
3) a do amor romântico, projetado, ou da citredo;
4) a do hieros gamos, a rubedo, a introjeção do Cristo gnóstico ou do 2o Adão (o homem individuado).

No 6o Sermão, Jung analisa dois símbolos: o da serpente que corporifica a sexualidade, ou o pensamento do desejo; e o do pássaro branco, que corporifica a espiritualidade ou o desejo do pensamento. Mais uma vez considera o conflito entre sexualidade e espiritualidade, no Anthropos ou no Deus interior. 

A serpente é a alma telúrica, mensageira do Pai Telúrico ou do PHALLOS; e o pássaro branco é o mediador entre o Homem e a Mãe Celestial. Interessante notar a inversão que aqui Jung faz, considerando a divindade celestial, feminina; e atribuindo caráter masculino à Terra.

http://listas.terra.com.br/system/items/000/019/670/medium/0_Ad_o_Eva_e_a_serpente_no_Para_so.jpg?1265184701Jung fala dos adoradores da serpente (os ofitas) e da kundalini. A serpente é como Mefistófeles a guiar Fausto. Ela representa a sabedoria sagrada dos instintos que resgata o 1o Adão da servidão ao demiurgo. É uma alma semidemoníaca, tem um caráter feminino, associada aos mortos que não passaram ao estado de solidão, e instila temor, inflamando o desejo.

Psicologicamente, trata-se de um espírito tirano e atormentador, tentando para a pior espécie de companhia. A serpente desce às profundezas, paralisa e estimula o demônio fálico. Traz pensamentos ardilosos saturados de desejo. Ela nos é útil ao escapar de nosso alcance e, ao persegui-la, ela nos mostra o caminho que, limitados, não poderíamos encontrar.


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 O pássaro branco é a alma semicelestial, casta e solitária; mensageira da MÃE CELESTE que intercede e adverte, embora não possua poderes contra os deuses. É o pensamento efetivo, masculino, é o desejo do pensamento que dá significado à vida, através do conflito. Comanda a solidão e recebe as mensagens dos que alcançaram a perfeição. Para atingir tal significado é preciso a gnose, como autoconhecimento, introspecção e consciência; ligada à pistis (confiança ou fé empírica). É um veículo do Sol.

Em sua dialética de oposições, Jung acha necessário incorporar os dois princípios: o pensamento e o desejo. Diz ele: “Cada oposto contém sua polaridade latente que pode emergir pela enantiodromia...O mistério dos opostos não é um problema a ser solucionado, mas uma condição a ser superada pela psiqué como um todo, não apenas pelo intelecto, levando à transformação na cadeia infinita dos opostos polares que formam a estrutura do ser.”
Criticando o racionalismo ocidental, Jung adverte para a questão do significado, da gnose como experiência da totalidade ou da inteireza. É um processo de tensão entre opostos e a posição gnóstica é um tipo especial de significado que deve ser vivido. Para Jung, a verdadeira ekklesia é a porção da humanidade que reconhece sua própria origem divina, é a pessoa consciente que busca a comunidade para fortalecer a vontade humana no sentido da individuação ou da solidão.

Isso gera a tensão entre o individual e o coletivo, já que o autoconhecimento ou a gnose, para ser atingida, exige a distância em relação ao coletivo que, no entanto, existe duplamente em nós, por via da consciência e do inconsciente.

Para o gnóstico, pecar é errar o alvo (etimologia do termo hermatia) e a questão da paz de espírito é apenas uma pausa entre o conflito passado e o conflito iminente. Mas como o conflito é que traz o significado, a gnose é a experiência desses significado, a compensação entre os opostos.

Hoeller considera que há diferenças entre a serpente gnóstica e a concepção junguiana dela. A primeira é sábia e sagrada, mensageira de SOPHIA e da consciência, tendo representado esse papel junto a Eva. Para os hindus, a serpente kundalini é um símbolo da individuação humana. Para Jung, ela é um demônio tirânico, com o qual, no entanto, se aprende, pois ensina a gerar-se a si mesmo, numa opus contra naturam, por sermos duais: carne e espírito, a serem transcendidos para se formar um novo Self.
Em aramaico, a palavra serpente quer dizer instruir, pelo simbolismo dual do anfíbio, por sua co-inerência de opostos num mesmo ser ou princípio. Comenta Hoeller que, na verdade, a serpente e o pássaro têm a mesma natureza: a feminina e a masculina, formando o Andrógino e fundando a divisão do Anthropos em terrestre e celeste.

Enfim, o pássaro branco é o pensamento, o espírito, a transcendência, o princípio salvador. É Hermes, como o deus da revelação, o mediador entre os homens e os deuses, levando-lhes a SOPHIA. O Anthropos hoje é pessoal e humano e deve precaver-se contra o perigo da inflação do ego.

No 7o Sermão, Jung fala do ser humano - criador de significados - como o portal por meio do qual penetramos do macrocosmos (o infinito exterior, o mundo dos deuses, dos demônios e das almas) no microcosmos (o infinito interior) e diz que “à imensurável distância cintila solitária uma estrela, no ponto mais alto do céu. Trata-se do único Deus desse solitário ser. É seu mundo, seu Pleroma, sua divindade”. É seu Deus pessoal...Simbolicamente, o pentagrama representaria o microcosmo, e o hexagrama o macrocosmo, representação do mundo das projeções.

O homem é o elo, o mediador que promove o equilíbrio entre o micro e o macrocosmos; mas isso ele só fará se, como ABRAXAS, for capaz de dar nascimento a seu próprio mundo, de mudar e transformar-se, operando a opus contra naturam, isto é, superando o mundo natural, criando um mundo de significados, acabando com as projeções ilusórias, libertando-se dos dualismos e de ABRAXAS, conquistando o Self, no retorno a Si-mesmo, unindo o micro e o macrocosmos, mediante a lei da sincronicidade, que traduz a eternidade interior e exterior, pela transgressividade dos arquétipos.

A estrela que cintila solitária é o Deus do homem e seu destino; é sua divindade tutelar e seu repouso. O fim da jornada de sua alma, nela reluzem todas as coisas com o brilho de uma grande luz. “A esse Ser, o homem deveria orar”, aumentando a luz da estrela, construindo uma ponte sobre a morte, aumentando a vida no microcosmo. 

E só quando conquistado o seu Deus pessoal a ser gnosticamente vivenciado, além da fé e da crença cegas, com a imago Dei em seu coração é que o homem se sentirá interdependente com Deus, promovendo pela gnosis kardia - isto é, pelo “conhecimento do coração” que confere um significado à vida - o mito da redenção mútua e da encarnação contínua de Deus em cada indivíduo da espécie humana. Aí poderá vivenciar o mito do eterno retorno: RUMO AO LAR ENTRE AS ESTRELAS...




VI - CONCLUSÃO

Jung é um gnóstico, na medida em que vivencia a experiência direta e interior (1914-19) com as imagens arquetípicas: sombra, trevas etc., como o caminho do auto-conhecimento e da individuação.
O processo junguiano de individuação é a contrapartida moderna da luta pela aquisição gnóstica do autoconhecimento. Assim, salvar o Homem do mundo é para um gnóstico o que Jung denomina de desidentificação em relação ao Outro exterior e ao Outro interior, inclusive de sua Sombra, já que o Bem e o mal estariam contidos no Pleroma, a realidade indivisa primitiva, indiferenciada, para Jung, o inconsciente de Deus, contendo em potencial o caos e o cosmos.

Os Sermões representam a expressão metafórica de uma experiência interna. Assim, alguns paralelos podem ser traçados entre os princípios gnósticos e a psicologia junguiana. São em número de oito:
 
1- o elemento pneumatológico = Si-mesmo;
2- diálogo consciência/inconsciente, como a tentativa de experiência direta com a realidade
arquetípica;
3- processo de individuação como o percurso da alma para retornar à sua verdadeira morada, a
seu hthos, pelo processo de autoconhecimento;
4- a aceitação do mal, da dor e do sofrimento como ontologicamente substantes e não apenas
como ausência do Bem;
5- a vivência da alienação da consciência para atingir a plenitude;
6- o Pleroma, o Anthropos e o Si-mesmo, como a experiência dos opostos;
7- a plenitude do Si-mesmo como aspiração substitutiva à da santidade de Deus e dos santos;
8- a plenitude e não a perfeição moral como escolhas emocionalmente auto-sustentadas.

A teogonia de Jung é a projeção no macrocosmo da psiqué humana e os mitos de criação (cosmogônicos) descrevem o despertar da consciência a partir do inconsciente. Para ele, o Demiurgo é o ego ou o pequeno Si-mesmo. Nossos relacionamentos projetam nossos fracassos e inadequações interiores: é o reino da sombra, o vilão interior. Além disso, ele escolhe Sophia como a mais elevada entre as figuras de anima: Barbelo, Eva, Helena e Maria. Estas são representantes de fases anteriores do processo de autoconhecimento masculino, que é acionado quando a anima, ativada, conduz a alma para dentro do interior psíquico e produz a totalidade indispensável. Para ele, salvar o homem do mundo é um processo de desidentificação em relação ao Outro externo e ao Outro interno.

Jung diz mais: mudança sem transformação é um desastre: os elementos naturais apenas mudam, mas não se transformam, por isso é necessário realizar a opus contra naturam, para que haja real transformação e diminuam as projeções, preparando o homem para encarar sua própria luz interior, quando o Self retorna a si-mesmo, dando a quintessência do que foi e do que será.

Sobre a questão do mal, Jung pronuncia-se contra a teoria platônica, retomada por Santo Agostinho, de que o mal é a ignorância ou privação do Bem; para ele, o mal existe como pólo antinômico do Bem, atributos que se anulam no Pleroma. Isso ele afirma em seu Primeiro Sermão. Nessa questão, Jung coloca-se contra a teoria agostiniana da privatio boni, de origem platônica.

Jung levanta a hipótese da inconsciência de Deus, a partir do caos da indiferenciação ao cosmos, da lei, da ordem e da diferenciação. Para ele, não existem seres irreligiosos, apenas há os que não reconhecem o nível importante do inconsciente, o poder da imaginação e a dialética de compensação que efetiva, por meio dos símbolos, os conteúdos inconscientes. Mas acrescenta ele: a necessidade não é de uma crença e sim de uma experiência religiosa que integra a alma numa totalidade. Deus é para ser vivenciado, pois só o que experimenta está vivo, o que crê está morto. Daí a importância do controle da consciência que enriquece e beneficia a alquimia e a magia do inconsciente em suas projeções.

É assim que Jung dá grande importância à subida do nível de consciência, a partir do inconsciente urobórico e indiferenciado. Disso dão conta os mitos luciferinos e prometeicos, bem como os papéis de Lilith e Eva.

Na verdade, Jung acha que não somos nós que fazemos as imagens de Deus: “Elas é que se fazem”, constituindo-se a imago Dei num complexo autônomo de grande força e intensidade, arraigado na plenitude do Ser, na psiqué como um todo, cabendo apenas ao ego pessoal confiar nesse poder transcendente, que é o Deus que está na alma, como uma realidade viva, dando-nos o esplendor dos recursos suprapessoais, da criatividade e da auto-renúncia.

Tais idéias conduzem diretamente à relatividade da concepção de Deus, sendo a prece apenas o prazer que se extrai da experiência divina, como doação de si-mesmo a seu Deus interior: a gnosis kardia, já mencionada. Por via de conseqüência, o mito da encarnação contínua de Deus nos seres criados e a redenção mútua do homem e de Deus, idéias que Jung retomará na década dos 50, com seu “Resposta a Jó”.

No campo da moral, Jung aceita o antinomianismo dos gnósticos (não reconhecimento das leis ditadas pela moral convencional dos homens em sociedade) e propõe a ética da convicção pessoal, ditada pelo núcleo arquetípico da sabedoria interior que cada homem possui. Para ele, a meta da plenitude não deve ser confundida com os ideais da perfeição, pela via da imitação do Cristo.

Hoeller acha mesmo que a individuação pode implicar em ir-se contra os critérios estabelecidos pela sociedade, evidenciando um conflito entre a lei e a liberdade do indivíduo, único verdadeiro portador de consciência. (Cf. 1993:155).

Como Deus é uma união de opostos no Pleroma, a plenitude do Ser só ocorre no inconsciente coletivo: bem e mal, belo e feio, verdade e erro etc. Daí, a importância da integração da sombra, para compor a totalidade do indivíduo, incluindo seu lado negativo ou rejeitado no processo de individuação.

https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiI-U1j-YHficNJBtiIX-fHcctRl7N6nysKEpwvpbMquyXhNoDI5Ji7zN0yw-CeyyudruMEfgiNghpfCxHC76a11mRcnEw7DCJue6wYRhyphenhyphenyWBKY4F8Ub6CJAohMlFGMqovVkSymYNDbHTQ/s320/Lucifer_Mars_Seal_Glowing_.jpgAcompanhando Hartmann e Schopenhauer, Jung concebe Deus como inconsciente, representado pelo caos e sua indiferenciação, tanto no inconsciente, como no cosmos. Resulta, então que a missão do homem é o resgate da diferenciação pela consciência, inclusive pela consciência do mal.

A subida do nível de consciência, cujos mitos principais, já apontados, são os de Lúcifer e de Prometeu é a verdadeira missão do homem na terra e o papel do feminino no processo de individuação (Lilith, Eva, Pandora) é reconhecido em diversos mitos de diferentes povos.

Jung segue ainda as idéias de um filósofo medieval - Joachim dei Fiori - que falava de uma Era do Pai, uma Era do Filho e uma Era do Espírito Santo. Em seu livro “Resposta a Jó”, Jung retoma essas idéias com seu mito de encarnação contínua de Deus e da redenção mútua do homem e de Deus.
Do ponto de vista religioso, aceitam os gnósticos de Alexandria, nesses primeiros séculos da Era de Peixes, a figura de Jesus - o homem perfeito - que encarna o CRISTO, o ungido, o Messias - emanação do Deus perfeito - para a redenção do Homem e da Humanidade. Jung, no entanto, criticará a unilateralidade da concepção cristã, com a ausência da sombra divina, o Leviatã. Ele fala, também, da sombra de Deus e do Cristo, ainda que não aceita oficialmente pelo cânones da Igreja. Ele se refere à figura do Anticristo, que surgiu no fim do primeiro milênio cristão, como uma enantiodromia à perfeição imaculada do Cristo. Aconselha ele que devemos temer a Deus e ensina que a idéia do anticristo é arquetípica, para completar o quatérnio: MAL X BEM; ESPÍRITO X MATÉRIA..

Em suma, a salvação ou redenção do Homem não se faz pela fé, mas pelo conhecimento - GNOSE (do grego = conhecimento). Mais precisamente, pelo autoconhecimento. Coincide assim o esforço gnóstico com o processo de individuação junguiano, a partir dos seguintes pressupostos:

1) - se há um Deus supremo, transcendente; por outro lado, há um Deus imanente, em cada ser humano, que cumpre libertar e contactar, pela experiência direta do divino em nós;

2) - o caminho para isso é o da transformação da alma, cadinho onde as experiências místicas ocorrem, e onde se cumpre (ou não) o casamento alquímico do Rei e da Rainha, do divino e do humano, em nossos corações: é o Caminho da Individuação;

3) - a meta e o propósito da vida são, portanto, o atingimento desse estado de consciência, a partir da inconsciência - da agnoia - anterior, sombra que sustenta o desabrochar da consciência divina no Homem;

4) - o grande pecado da alma é a ignorância (avidya, em sânscrito) que a mantém nas trevas, afastada de sua divina origem.

5) - a possibilidade de se realizar a transmutação da alma é sustentada pelos arquétipos,elementos estruturantes da psiqué, padrões e formas dominantes que organizam o ego,complexo do nível consciente, assim como as demais partes que se confrontam na arena psíquica: a sombra - geralmente identificada pelos aspectos rejeitados, não assimilados que permanecem subliminares na inconsciência; a persona - cuja base arquetípica permite a adaptação ao mundo exterior, de relação, integrando a consciência coletiva no indivíduo etc.

6) - dos arquétipos - do pai, da mãe, do puer, da puella, do senex, do animus, da anima e outros - o principal, é o SELF (Si-mesmo), o que coordena, estrutura e corrige compensatoriamente os desvios das ações conscientes. Representa a imagem de Deus em nossa alma, o Deus interior, o Cristo imanente, objeto constante da busca gnóstica pelo conhecimento e pela devoção.
7) - por último, a relação dual entre matéria e espírito, se é resolvida por alguns gnósticos pela negação da primeira e até por sua tentativa de supressão, por outros, mantido embora o dualismo, a matéria é considerada divina, por ser o Templo que abriga o espírito e, assim, é considerada e respeitada. Alguns gnósticos chegaram ao extremo de supor que nada do que fosse materialmente feito poderia afetar o espírito, razão pela qual permitiam-se até exageros e licenciosidades, condenados pelos demais (Carpócrates).
8) - ABRAXAS é a energia psíquica, a vida criativa que confere significado a partir da ilha da consciência que emerge do inconsciente. O mergulho neste, no entanto, exige o afastamento do espetáculo feérico da vida ativa sustentada por ABRAXAS.

Os Sete sermões representam a descida pelo setenário do Pleroma à psiqué humana, a criadora das imagens, sendo o homem o mediador entre as duas eternidades, e a sincronicidade o ponto de encontro entre ambas. Trata-se do encontro entre a física subatômica e a psicologia analítica.

É o homem que dá significado através da consciência - reino das avaliações subjetivas - contactando e ativando emocionalmente o inconsciente e, assim, trazendo as imagens arquetípicas à luz da consciência. Sendo os arquétipos psicofísicos ou psicóides, eles se manifestam nos dois planos, o que caracteriza sua transgressividade.

O homem, como alquimista e sacerdote dessa nova gnose, é um modelo unitário da realidade com conexões causais e acausais, reconciliando espírito e matéria, na unidade do mundo, na síntese do unus mundus. Vida e espírito se reúnem: o espírito dá o significado, mas ele não é nada sem a vida...
Sem dúvida, que a natureza dual da condição humana aconselha o convívio sábio com estas forças instintivas, inconscientes, que deverão ser encaminhadas - pela GNOSE, pelo reconhecimento - à luz da consciência, que delas retirará a necessária energia para a Grande Obra, a saber a transmutação do chumbo em ouro, da matéria bruta em matéria sutil, ultrapassando os sete corpos, os 32 caminhos e as 50 portas - estreitas que sejam - para se chegar à flor de ouro, que jaz escondida no fundo de nossas almas. Achá-la é o desafio diuturno da vida de cada um de nós!

No entanto, é preciso precaver-se contra o falso otimismo do poder positivo da mente: é preciso estar sempre de olhos abertos, sabendo introvertê-los, para fugir da sedução de ABRAXAS, encontrando o Deus interior que realiza a própria transformação, como realidade psíquica, que dá significado à vida, engendrando o processo de individuação.

BIBLIOGRAFIA

1 - BAIGNET, M., LEIGH, R., e LINCOLN H. - O SANTO GRAAL E A LINHAGEM SAGRADA. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.
2 - DOURLEY, J.P. - A DOENÇA QUE SOMOS NÓS: a crítica de Jung ao cristianismo São Paulo: Paulinas, 1987.
3 - FERRATER MORA, J. DICCIONARIO DE FILOSOFIA. Buenos Aires: Sudamericana, 1958.
4 - HOELLER, S.A. - A GNOSE DE JUNG E OS SETE SERMÕES AOS MORTOS. São Paulo: Cultrix, 1990.
5 - _____________ - JUNG E OS EVANGELHOS PERDIDOS: uma apreciação junguiana sobre os Manuscritos do Mar Morto e a Biblioteca de Nag Hammadi. São Paulo: Cultrix/Pensamento, 1993.
6 - JUNG, C.G. - SÍMBOLOS DA TRANSFORMAÇÃO
7 - LAPERROUSAZ, - OS MANUSCRITOS DO MAR MORTO. São Paulo: Círculo do Livro, s/d.
8 - SCHUON, F. - GNOSIS, lenguaje del Si. Trad. do francês por José Manuel de Rivas. México: Heliópolis, 1993.
9 - VOEGLIN, E. - CIENCIA, POLITICA Y GNOSTICISMO. Madrid: Rialp, 1977.
* Livre-Docente e Doutora em Ciências pela UERJ. Pesquisadora da obra de Jung, com livros e artigos publicados.

FONTE:  Junguian Institute of Rio de Janeiro

                                                                                                             
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