27 de out. de 2012

Credores e Devedores


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Naronda: 

Certo dia, quando nós Sete e o Mestre estávamos voltando do Ninho da Águia, vimos Shamadam ao portão, agitando um documento que tinha na mão, diante de um homem que se achava prostrado a seus pés. Dizia Shamadam, bastante zangado:

  O teu delito esgota a minha paciência, não posso mais ser tolerante. Ou pagas já, ou irás apodrecer na prisão! Reconhecemos o homem como sendo Rustidion, um dos arrendatários da Arca, que se achava em débito de certa soma de dinheiro para com esta. Esfarrapado e envelhecido, suplicava ao Superior que lhe desse prazo para pagar os juros, dizendo que numa só semana havia perdido o único filho e a única vaca que possuía, em conseqüência do que, sua velha esposa havia sido acometida de paralisia. O coração de Shamadam, porém não se enternecia. 

O Mestre foi ao encontro de Rustidion e, tomando-o delicadamente, pelo braço, disse: 

MIRDAD: 

Levanta-te, meu Rustidion. Tu és também imagem de Deus, e a imagem de Deus não se deve curvar diante de sombra alguma. (E voltando-se para Shamadam) Mostra-me o título da dívida. 

Naronda: 

Shamadam, que havia um momento estava furioso, para espanto de todos se tornou mais manso que um cordeiro e humildemente passou ao Mestre o papel que tinha na mão. O Mestre examinou com todo o cuidado o documento, enquanto Shamadam o olhava calado, como se estivesse sob a ação de um  encantamento. 

MIRDAD: 

Não era onzenário o fundador desta Arca? Por acaso ele te legou dinheiro que  devesse emprestar com usura, ou terras para alugar a um preço exorbitante? Deixou-te ele por herança o suor e o sangue de teu irmão, ordenando-te que lançasses à prisão aqueles cujo suor tivesses recolhido até não haver mais e cujo sangue tivesse sugado até a última gota?

 Uma arca, um altar e uma luz foi o que ele te deixou em herança — nada mais. Uma arca, que é o seu corpo vivo; um altar que é o seu destemido  coração; uma luz, que é a sua fé ardente. Estas coisas ele te ordenou que as conservasses intactas e puras, num mundo que baila ao som das flautas da Morte e se espoja no lamaçal da iniqüidade, devido à sua falta de fé. 

Para que os cuidados do corpo não vos distraíssem o espírito, vos foi permitido viver de caridade dos fiéis. E nunca, desde que a Arca foi lançada, houve falta de caridade. 

Mas ai! Esta caridade tu agora a transformaste em maldição, para ti e para os caridosos, pois com as suas doações, tu subjugas os doadores. Tu os enforcas com as cordas que eles fiam para ti. Tu os desnudas das roupas que teceram para ti. Tu os  matas de fome pelo pão que para ti assaram. Tu constróis prisões para ele com as pedras que para ti eles cortaram e aparelharam. Para eles tu fazes jugos e esquifes com a madeira que eles cortaram para te  aqueceres. Empresta-lhes com usura o seu próprio suor e o seu próprio sangue, pois que é o dinheiro senão suor e sangue do homem, cunhado em moedas com as quais se acorrenta o próprio homem? Que é a  riqueza senão o suor e o sangue do homem, armazenado por aqueles que suam e sangram o mínimo, para  moer as costas daqueles que suam e sangram o máximo? 

Malditos! Mais uma vez malditos sejam aqueles  que queimam suas mentes e seus corações e assassinam seus dias e suas noites para acumular riquezas, pois não sabem o que estão acumulando! 

O suor das prostitutas e dos ladrões; o suor dos tuberculosos, dos  leprosos e dos paralíticos; o suor dos cegos, dos coxos e dos aleijados; o suor do arador e do seu boi, dos carneiros e do pastor, do segador e do que faz a colheita — de todos estes e de muitos mais — eis o que armazena o acumulador de riquezas!

O sangue do órfão e do velhaco; do déspota e do mártir; do perverso e do justo; do que rouba e do que é roubado; do executor e do que é executado; o sangue dos exploradores e trapaceiros e daqueles que são explorados e ludibriados — o sangue de todos estes e de  muitos mais, eis o que armazenam os que acumulam riquezas! 

Malditos! Sempre malditos sejam aqueles  cuja riqueza e cujo capital nos negócios é o suor e o sangue dos homens! Suor e sangue será, finalmente, o seu preço. Terrível será o preço e apavorante o ajuste de contas. 

Emprestar, e emprestar a juros! Realmente   ingratidão, excessivamente descarada, para que possa desculpar. Que tens tu para emprestar?  Não é a tua própria vida um presente? Se Deus quisesse cobrar o juro pelo mais ínfimo dos presentes que  te deu, onde irias buscar com que pagálos? 

Não é este mundo um tesouro comum, onde cada coisa e cada  homem deposita tudo que possui para a manutenção de todos? 

Por acaso a calhandra te empresta o seu canto, ou a  fonte a água que dela jorra? E o carvalho empresta a sua sombra, ou a tamareira suas dulcíssimas tâmaras? 

Empresta o carneiro a sua lã e a vaca o seu leite... a juros?  E as nuvens, vendem-te a chuva, ou o sol o seu  calor e a sua luz? 

Que seria de tua vida sem estas coisas e milhares de outras? E qual dentre vós pode dizer  quem depositou o máximo e quem confiou o mínimo, na tesouraria do mundo? 

Podes tu, Shamadam, calculara quais foram as contribuições de Rustidion para a tesouraria da Arca? Emprestas-lhe as suas  próprias contribuições — talvez uma parte ínfima das mesmas — , cobras-lhe juros escorchantes, e agora  queres fazê-lo apodrecer na prisão?! Qual o juro que exiges de Rustidion? Não vês como o teu empréstimo  foi lucrativo?! Que melhor pagamento queres do que um filho morto, uma vaca morta e uma esposa paralítica?! Que melhores juros exigir do que os andrajos  que lhe cobrem o corpo curvado?! 

Esfrega os  olhos, Shamadam. Desperta, antes que te seja exigido também que pagues as tuas dívidas com juros e, não o podendo fazer, sejas mandado apodrecer na prisão. O mesmo digo a todos vós, companheiros. Esfregai  os vossos olhos e despertai.

Dai quando puderdes e tudo que puderdes. Mas jamais emprestai, senão tudo  quanto tiverdes, inclusive a vossa vida, se tornará um empréstimo, e um empréstimo vencido. Sereis  considerado insolventes e lançados à prisão. 

Naronda: 

O Mestre olhou então novamente para o documento   que tinha nas mãos e o fez em pedaços que lançou ao vento. Voltando-se então para Himbal,  que era o tesoureiro, disse-lhe: 

MIRDAD: 

Dá a Rustidon o necessário para comprar duas vacas e cuidar de  sua esposa e de si próprio, até o fim dos seus dias. E tu, Rustidion, vai em paz. Tua dívida está resgatada.  Toma cuidado para jamais te tornares credor, pois o débito de quem empresta é muito mais pesado do que o daquele que toma emprestado. 

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