Há algum tempo vimos insistindo que a Gnosis não é propriedade
intelectual de qualquer um, seja mestre, discípulo ou leigo, que a tenha
experimentado e comunicado na forma de alegorias ou doutrinas. Pelo
contrário, a Gnosis corresponde à uma experiência mística única e
transcendente de lembrança e reconhecimento de uma identidade divina
original.
Desta forma, qualquer um que experimente a Gnosis em sua intimidade
espiritual, se assim desejar, pode comunicá-la com o instrumental
simbólico de que dispõe, dando origem a uma mitologia particular e
exclusiva, mas que em essência está conectada com a jornada de todas as
essências espirituais que num momento perdido no tempo desprenderam do
absoluto e hoje estão condenadas à existência humana.
Mesmo
que alguns resistam à ideia, aqueles que já viveram a experiência da
Gnosis jamais deixariam de reconhecer que uma destas mitologias
gnósticas particulares é a ópera rock The Wall, idealizada por Roger
Waters, um dos fundadores e líder da banda britânica de rock progressivo
Pink Floyd, conhecida mundialmente por suas letras filosóficas e sua
música psicodélica.
Em síntese, The Wall fala sobre a angústia vivida pelo personagem
Pink, que não consegue lidar com os fatores que o oprimem desde a
infância e acaba se isolando atrás de um muro metafórico. As músicas
narram os episódios de sua vida física e psíquica, dos tormentos
sofridos pela ausência do pai, a sufocação de uma mãe protetora e da
opressão sofrida na escola por professores tirânicos. Estas vivências se
tornam tijolos que vão formar o muro de seu isolamento.
The Wall foi convertido em um filme que por vezes é considerado um
mega videoclipe, mas qua a maioria considera uma animação musical. Foi
produzido no ano de 1982 pelo diretor britânico Alan Parker, baseado no
álbum The Wall, da banda Pink Floyd. O roteiro foi escrito pelo
vocalista e baixista da banda, Roger Waters, e possui poucos diálogos,
sendo mais metafórico e movido pelas músicas de fundo sendo
interpretadas e sequências de animação.
No filme de Alan Parker, o personagem central acaba se tornando uma
estrela do rock, e seus relacionamentos são marcados pela infidelidade,
pelo abuso de drogas e por rompantes de violência. A ruína de seu
casamento é o elemento que completa a construção do muro. Ali dentro,
escondido, Pink se refugia num mundo de fantasia que cria para si, onde
se transforma num ditador ao estilo fascista, que ordena a perseguição
daqueles que são considerados diferentes e indignos.
Depois de muitos abusos, Pink se arrepende e se submete a um
julgamento, onde é acusado de mostrar seus sentimentos humanos. Ele
enfrenta os três personagens que causaram a construção do muro: o
professor tirano, a esposa superexigente e vingativa que o acusa de
abandono para justificar sua infidelidade e a mãe excessivamente
protetora. No fim, ele é condenado, e seu juiz interior ordena a
destruição do mundo.
Sem dúvida, The Wall é uma impressionante e profunda metáfora do
isolamento humano provocado pela a submissão do indivíduo às rígidas
estruturas sociais formadas pelas instituições religiosas, pelas forças
militares e pelo complexo educacional, que dificultam relacionamentos
baseados na autenticidade e causam embotamento emocional. Além disso, a
biografia de Waters e algumas de suas experiências desagradáveis com um
antigo membro da banda e com um fã canadense serviram de inspiração para
a história.
Não é nossa intenção reduzir esta complexa mistura de experiências a
uma revelação mística traduzida através de elementos traumáticos e
psicodélicos, mas sim ressaltar os aspectos presentes em The Wall que
narram a epopeia gnóstica da alma desde o seu desprendimento de sua
fonte primária, passando pelo tormento da prisão existencial até o seu
retorno apoteótico à origem mediante a resignificação de suas próprias
experiências.
Em síntese, a mitologia gnóstica que descreve a jornada da alma
consiste na existência de uma fonte primária espiritual, chamada em
algumas correntes gnósticas de Absoluto, de onde foram emanadas as
essências espirituais, chamadas Eons. Um destes Eons, chamado Demiurgo,
construiu um mundo material semelhante ao mundo espiritual, mas falho,
cheio de regras e de mecanicidade, e marcado pela impermanência. Neste
mundo vieram parar as essências emanadas do Absoluto, na mitologia
representadas por Sophia, que aqui chega e fica aprisionada, padecendo
de múltiplos sofrimentos, até resolver se arrepender e retornar à sua
origem.
Para os gnósticos, o mundo criado pelo Demiurgo é o nosso mundo
material e finito, um ambiente falho e ilusório. Contudo, o Absoluto
precisa deste mundo demiúrgico pois é somente através dele que as
essências espirituais serão capazes de alcançar o conhecimento de si
mesmas, fenômeno este que é chamado de Gnosis. Uma vez conciliadas em
corpos materiais, estas essências sofrem, choram, riem e brincam, e em
todas estas experiências humanas existe a oportunidade de alcançar a
Gnosis.
Mas esta humanidade que as essências espirituais adquirem fica
registrada como memória e acaba formando uma espécie de identidade, que é
chamada de Ego. À princípio, este Ego é criado como uma forma da alma
se proteger da angústia que sente por estar longe do Absoluto. Mas, logo
o Ego se mostra inútil para este fim, e se converte em um grande
obstáculo para a lembrança da unidade transcendente e uma grande fonte
de novos sofrimentos.
Esta breve descrição mitológica possui elementos que são
identificáveis em The Wall, mesmo que Roger Waters nunca tenha se
declarado gnóstico, pois a mitologia gnóstica é conta a história da
alma, não importa em qual corpo ela esteja encarnada.
E o primeiro, e talvez mais evidente, elemento gnóstico presente em
The Wall é o sentimento da ausência paterna, retratado logo pela
primeira música, intitulada In The Flesh (Em Carne e Osso), e que se
apresenta como resultado da emanação da alma da fonte primária absoluta e
espiritual e a sua consequente encarnação, que é o mesmo que entrar na
carne.
Nesta primeira canção, Roger Waters apresenta o drama da alma que,
sob a ótica gnóstica, desejava separar-se da luz e fazer-se de carne e
osso para experimentar um espetáculo de múltiplas sensações oferecidas
pela criação, mas que aqui chegando se deu conta de que cometeu um
engano ao perseguir uma ilusão, e encontrou apenas a sensação esquiva de
felicidade e a frieza da matéria:
So ya’… Thought ya’… Might like to… Go to the show… To feel… The warm thrill of confusion… That space cadet glow… Tell me is something eluding you sunshine?… Is this not what you expected to see?… If you wanna’ find out what’s behind these cold eyes… You’ll just have to claw your way through this disguise!… ”Lights! Turn on the sound effects! Action!”… ”Drop it, drop it on ‘em! Drop it on them!” (In The Flesh)
Então você… achou que… poderia gostar de… ir ao espetáculo… Para sentir… A excitação calorosa da confusão… Aquele jovem brilho espacial… Diga-me… Tem algo o iludindo querido (luz do sol)?… Não era isso o que você esperava ver?… Se você quiser encontrar o que esta por trás deste olhos frios… Você terá de atravessar com dificuldades este disfarce!… “Luzes! Ligue os efeitos sonoros! Ação!”… “Solte, solte-os sobre eles! Solte-os sobre eles!” (Em Carne e Osso)
A alma é chamada de jovem brilho espacial e de luz do sol, algo muito
significativo, pois para os gnósticos a alma é um raio proveniente das
profundezas da luz cósmica universal que concilia a si mesma no universo
material. Para Waters, a criação e a matéria são um disfarce que oculta
um mistério, que é a própria alma, e que ela mesma será capaz de
encontrar somente depois de muitos esforços.
E é aqui que entra em cena o segundo elemento gnóstico, agora
representado pelas canções seguintes, tratando da angústia experimentada
por Pink – a alma – ao sentir-se oprimido pela estrutura social – o
mundo material. De início, a segunda música, intitulada Thin Ice (Gelo
Fino), narra a dificuldade de viver nesta estrutura, e a perspectiva
sempre presente de retorno ao abismo espiritual, que implicaria numa
saída de si mesmo.
Momma loves her baby… And Daddy loves he too… And the sea may look warm to you Babe… And the sky may look blue (…) If you should go skating… On the thin ice of modern life… Dragging behind you the silent reproach… Of a million tear stained eyes… Don’t be surprised, when a crack in the ice… Appears under your feet… You slip out of your depth and out of your mind… With your fear flowing out behind you… As you claw the thin ice. (Thin Ice)
Mamãe ama o seu filho… E papai também o ama… E o mar pode parecer morno para você querido… E o céu pode parecer azul… Se você patinasse… Sobre o gelo fino da vida moderna… Arrastando atrás de você a censura silenciosa… De um milhão de olhos cheios de lágrimas… Não fique surpreso, quando uma rachadura no gelo… Aparecer debaixo de seus pés… Você deslizaria na sua profundidade e sairia fora de si… Com seu medo fluindo atrás de você… Enquanto você arranha o gelo fino. (Gelo Fino)
A metáfora do andar apreensivo sobre o gelo fino que se forma sobre o
oceano profundo e misterioso descreve como as próprias estruturas
sociais e os condicionamentos demiúrgicos dão origem ao medo da
liberdade, que em conjunto com as promessas do amor maternal e da
proteção paternal aprisionam a alma numa sensação de segurança. Esta
última, ao longo de toda a obra, será provada insuficiente para aplacar a
angústia, levando à construção do muro.
O início de Thin Ice introduz os fatores que formam a sensação de
segurança que anda de mãos dadas com o autoritarismo, sua única
garantia, ao mencionar as figuras paternais e a promessa de um oceano
morno e de um céu azul. Adiante, nas canções que seguem, Waters
apresenta com mais detalhes a censura e as regras rígidas mescladas com o
conforto que premia os que as respeitam e a elas se adaptam. Antes
disso, contudo, a saudades do pai e a ânsia de sua recordação reaparecem
na forma de uma certa decepção manifestada por uma alma que não
compreende ainda os motivos e as razões da existência, o que se converte
no primeiro dos tijolos do muro que começa a ser construído.
Daddy’s flown across the ocean… Leaving just a memory… The snapshot in the family album… Daddy what else did you leave for me?… Dad, what you leave behind for me?… All in all it was just a brick in the wall… All in all it was all just bricks in the wall. (Another Brick In The Wall, Pt. 1)
Papai voou através do oceano… Deixando apenas uma memória… A foto no álbum da família… Papai, o que mais você deixou para mim?… Pai, o que mais você deixou para trás para mim?… Foi tudo apenas um tijolo na parede… Tudo foram apenas tijolos na parede. (Outro Tijolo no Muro, Pt. 1)
Esta decepção dá origem à rebeldia da alma em relação ao objetivo de
sua existência, que para os gnósticos corresponde ao retorno à unidade
com a fonte espiritual originária através do encontro com o eterno que
está conciliado na multiplicidade da criação. Mas a alma também começa a
se mostrar revoltada com as estruturas sociais, prenunciando o
desajuste social que será revelado mais adiante.
When we grew up and went to school… There were certain teachers… Who would hurt the children any way they could… By pouring their derision upon anything we did… Exposing every weakness… However carefully hidden by the kids… (mananical laughter)… We don’t need no education… We don’t need no thought control… No dark sarcasm in the classroom… Teachers leave them kids alone… (The Happiest Days of Our Lives & Another Brick In The Wall, Pt. 2)
Quando nós crescemos e fomos para a escola… Havia certos professores… que machucavam as crianças de qualquer forma possível… Zombando de qualquer coisa que fazíamos… E expondo qualquer fraqueza… Tão bem escondida pelas crianças… (gargalhada mecânica)… Nós não precisamos de nenhuma educação… Nós não precisamos de nenhum controle de pensamento… Nenhum humor negro na sala de aula… Professor, deixe essas crianças em paz… (Os Dias Mais Felizes de Nossas Vidas & Outro Tijolo No Muro, Pt. 2)
Em Mother (Mãe), a verdadeira face da sensação de segurança se revela
ao oferecer conforto e proteção em troca da vigilância e do controle
pelo medo. Este processo iniciado em Thin Ice culmina com Goodbye Blue
Sky (Adeus Céu Azul), onde ocorre o reconhecimento da decepção provocada
pela falha do cumprimento da promessa de um admirável mundo novo.
Did you ever wonder?… Why we had to run for shelter?… When the promise of a brave new world… Unfurled beneath a clear blue sky. (Goodbye Blue Sky)
Você já se perguntou?… Por que tivemos que correr em busca de abrigo?… Quando a promessa de um admirável mundo novo… Abriu-se sob um limpo céu azul? (Adeus Céu Azul)
Nada do que a criação demiúrgica ofereceu até agora foi suficiente
para aplacar o desconforto da alma que decorre de sua separação do
absoluto espiritual, representado na obra pela figura paterna morta na
guerra. O vazio primordial que ela sentiu em sua vinda para o espetáculo
da matéria – expresso em In The Flesh – aumentou ao invés de diminuir,
obrigando a alma a partir em busca de meios para preencher com sensações
materiais esta falta que, para os gnósticos, é completamente
espiritual.
What shall we use to fill the empty… Spaces where we used to talk… How shall I fill the final places… How shall I complete the wall. (Empty Spaces)
O que devemos usar para preencher vazios… Espaços onde costumávamos falar… Como devo preencher os últimos lugares… Como posso completar o muro… (Espaços Vazios)
Na canção Empty Spaces acontece uma das mais belas cenas do filme de
Alan Parker, onde as faces de atração e repulsa provocadas pelo erotismo
são mostradas numa representação artística perfeita. De acordo com o
gnosticismo, o erotismo é o elemento biológico e espiritual que move o
indivíduo na direção da complementação, também biológica e espiritual,
oferecendo a possibilidade do reencontro tântrico com a divindade
através do prazer sempre crescente em intensidade e sublimidade, ao
mesmo tempo em que também apresenta a possibilidade de alienação
espiritual devido à concupiscência.
A três canções seguintes, Young Lust (Desejo Imaturo), One of My
Turns (Uma de Minhas Crises) e Don’t Leave Me Now (Não Me Deixe Agora),
mostram a dificuldade que a alma enfrenta diante dos múltiplos e
deslumbrantes prazeres que o erotismo lhe traz através de seus desejos.
Contudo, esta dificuldade mostra sua verdadeira face quando a alma
constata a impossibilidade de satisfação completa destes mesmos desejos,
levando Pink ao desespero, ao aprofundamento da fragmentação de sua
identidade e ao consequente rompimento de sua união matrimonial.
Não é demais lembrar que, para muitos grupos gnósticos da
antiguidade, havia um sacramento chamado Mistério da Câmara Nupcial,
através do qual era possível compreender e trabalhar positivamente com
os desejos e com a força erótica, de modo que sua multiplicidade não
ocasionasse um mergulho num estado anímico esquizofrênico, mas que
servisse de impulso para o encontro do mistério divino conciliado nos
matizes do universo material.
Finalmente, depois de tantos sofrimentos, tantos erros e tantas
tentativas frustradas de recuperar sua identidade espiritual originária e
fugir do medo que de diversas formas lhe foi imposto pela criação
material, vem a canção Another Brick in the Wall, Pt 3, onde o
personagem começa a consolidar o muro que vem construindo desde a
segunda canção, e que representa uma identidade ilusória, chamada pelas
tradições orientais e pelos gnósticos contemporâneos de Ego.
I don’t need no arms around me… And I dont need no drugs to calm me… I have seen the writing on the wall… Don’t think I need anything at all…. No!… Don’t think I’ll need anything at all… All in all it was all just bricks in the wall… (Another Brick In The Wall, Pt. 3)
Eu não preciso de braços ao meu redor.. E eu não preciso de nenhuma droga para me acalmar… Eu vi a escrita na parede… Não pense que eu preciso de alguma coisa… Não!… Não pense que vou precisar de algo… Afinal, foram apenas tijolos no muro. (Outro Tijolo Na Parede, Pt. 3)
O Ego é o elemento psíquico responsável pela separação definitiva da
alma do mundo espiritual e pelas sensações de auto-suficiência,
superioridade e onipotência. Esta separação da alma do Pleroma, termo
gnóstico que corresponde ao mundo espiritual, decorre da ausência de
Gnosis, o conhecimento (no sentido de lembrança e reconhecimento) de
Deus, e pode ser encontrada nas canções seguintes, Good Bye Cruel World
(Adeus Mundo Cruel), Hey You (Ei, Você), Is There Anybody Out There (Tem
Alguém Aí Fora) e Nobody Home (Ninguém em Casa).
Mas a obra permite entender os sofrimentos que se transformam nas
razões pelas quais a alma acaba assumindo o Ego como sua identidade, já
que ele oferece a ela a possibilidade de permanecer Comfortably Numb, a
música seguinte, que significa “confortavelmente paralisado,
entorpecido, insensível e ignorante”. E assim, ela estaria
definitivamente livre da sua angústia primordial, das decepções do mundo
e da culpa pelos seus próprios erros.
Com a identificação completa da alma com o Ego ocorre um novo
nascimento, representado pelo retorno da música In The Flesh (Em Carne e
Osso). Nesta encarnação psíquica o personagem principal é um ditador
carismático e adorado, distante como a figura paterna morta na guerra,
controlador como a figura materna acolhedora e vigilante, autoritário e
discriminador como o professor que escarnece os erros dos outros e
exigente como a ex-mulher que o abandonou e traiu.
Seu Ego é mostrado emulando as características que formaram seu muro,
e esta é a última alternativa da alma para enxergar sua própria
ignorância. Inclusive os membros do auditório que assistem ao discurso
do ditador gritam “hammer, hammer, hammer”, ou seja, “martele,
martele, martele”, representando que mesmo os elementos que formam seu
egoísmo oferecem uma alternativa de libertação.
É muito fácil julgar os erros alheios, aqueles que enxergamos à
distância, estando nós confortáveis em nossa própria ignorância. Mas
quando somos nós os autores dos erros, aí sim temos a possibilidade de
enxergá-los In The Flesh, na própria carne, e desta auto-observação virá
a oportunidade de quebrar o muro mediante o arrependimento, exatamente o
que acontece na canção Stop (Pare):
Do you remember me… How we used to be… Don’t you think we should be closer?… And I put out my hand just to touch your soft hair… To make sure in the darkness that you were still there… And I have to admit… I was a little afraid… Stop… I wanna go home… Take off this uniform… And leave the show… I’ve been waiting in this cell… Because I have to know… Have I been guilty all this time? (Stop)
Você se lembra de mim… Como costumava ser… Não acha que deveríamos nos aproximar?… Eu estico minha mão pra tocar seu cabelo macio… Para ter certeza que você está aí no meio da escuridão… E tenho que admitir… Eu estava com medo… Pare… Quero ir pra casa… Tirar este uniforme… Deixar o espetáculo… Estive esperando nesta cela… Porque tenho que saber… Tenho sido culpado todo este tempo? (Pare)
No filme, a sequência traz a angustiante cena do julgamento, no qual
todos os medos e todos os elementos que ajudaram a construir o muro são
trazidos diante de Pink. Curiosamente, ao longo de todo o julgamento ele
permanece absolutamente neutro, sem manifestar desespero ou revolta,
como se contemplasse serenamente seus erros do passado, aprendendo sobre
eles ao invés de sofrer.
Por fim, o muro é destruído por ordem do juiz interior de Pink, o que
corresponde à libertação da alma mediante seus próprios esforços de
arrependimento, palavra que vem do grego metanoia, e significa
mudança de perspectiva. Mesmo que representado de forma bizarra e
psicodélica, a figura do juiz representa a figura mítica do Cristo, o
elemento salvífico da mitologia gnóstica, que resgata a alma de seu
aprisionamento no mundo material e no Ego e a leva à uma reunião com as
demais essências divinas no Peleroma, o mundo espiritual, que para
Waters é o lado de fora do muro:
All alone, or in twos… The ones who really love you… Walk up and down outside the wall… Some hand in hand… Some gathering together in bands… The bleeding hearts and the artists… Make their stand… And when they’ve given you their all… Some stagger and fall after all it’s not easy… Banging your heart against some mad buggers wall… (Outside The Wall)
Sozinhos, ou em pares… Aqueles que realmente te amam… Caminham pra cima e pra baixo do lado de fora do muro… Alguns de mãos dadas… Outros em bandos… Os de coração aberto e os artistas… Se manifestam… E quando eles tiverem dado tudo de si à você… Alguns tropeçam e caem, afinal não é fácil… Bater seu coração contra o muro de algum maluco indesejado… (Fora do Muro)
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